domingo, 2 de maio de 2010
Fusão homem-mundo: a redenção
A pureza irrefletida e não mediada com que os bebês se relacionam com todos os objetos de sua experiência imediata e atual revelam o caráter efetivamente ontológico da fusão homem-mundo protagonizada pelo simples existir-junto. O que é existir-junto? Existir-junto é o que é. Em outras palavras: existir-junto é condição sine qua nom da não alienação. E alienar-se é não fundir-se orgasticamente com o que se impõem diante dos sentidos. O eu requer o distanciamento mediato: o eu está necessariamente alienado do mundo – e de sua própria essência. Tal alienação, por sua vez, tem suas causas. Em primeiro lugar, a previdência requer que se estabeleça uma primeira perversão da essência humana: o estabelecimento da reflexão. É preciso pensar para previr e prover, na luta contra as intempéries da natureza. Posteriormente, um segundo artifício muito útil para fixar os já corrompidos na existência é gerado: trata-se do advento da linguagem – conseqüência e segundo degrau de ascensão espiritual pós-reflexão. Assim, dotado de reflexão e possuidor de linguagem, o ser humano está instrumentalizado para protagonizar o advento da cultura. Nesse novo cenário, os bebês são logo ensinados e, assim, corrompidos pelos padrões existenciais dos adultos aculturados. Todo esse mecanismo resulta em um desvio pulsional que contradiz o telos celular dos indivíduos. É por isso que um verdadeiro humanista só poderia lutar por uma causa impossível: fazer com que a humanidade retroceda ao período pré-histórico. A eventual realização desse ideal (utópico?), além de prometer a satisfação pulsional dos indivíduos que se entregarão livremente aos instintos, numa fusão orgástica e estética com o mundo, também terá a virtude de livrar a humanidade de uma possível extinção causada por fatores antropogênicos. Isso porque em um mundo natural, povoado por afásicos animalescos, não existirá ciência: a mãe da tecnologia que permite destruir a fauna e a flora do planeta em ritmo vertiginoso.
sábado, 1 de maio de 2010
Pecado e neurose
Existem infelizes mais perspicazes que outros que, ao considerarem a soma de seus infortúnios, não buscam expiá-los em Deus: seu rigor epistemológico ou exigência de cientificidade faz com que busquem algo mais plausível e concreto e, por isso, derramam seus fantasmas sobre o divã. A troca é justa: ao invés de um interlocutor metafísico, em última análise fictício, que só se comunicaria com o fiel através de um delírio deste, tem-se um psicólogo capaz de intervir na moléstia psíquica do analisando. Com efeito, muito possivelmente, um psicanalista morreria de fome num mundo (só) de crentes.
Em todo caso, os infelizes requintados que trocaram a igreja pelo consultório, evidenciando um paralelo ou uma forte analogia entre pecado e neurose, saíram economicamente prejudicados: é que o perdão divino é gratuito, ao passo que a psicoterapia não é.
Em todo caso, os infelizes requintados que trocaram a igreja pelo consultório, evidenciando um paralelo ou uma forte analogia entre pecado e neurose, saíram economicamente prejudicados: é que o perdão divino é gratuito, ao passo que a psicoterapia não é.
Potência recalcada X potência sadia
É fácil perceber que todo aquele que obtém êxito nas áreas canonizadas de um suposto conhecimento só pode ser um espírito de segunda categoria. Pois, primeiramente, seria necessária uma submissão metafísica para seu empreendimento ter sucesso, e isto por si só já evidência um acomodamento diante de algum postulado ou axioma fértil e conveniente. Além disso, tal espírito que se lança a um empreendimento destes deve percebê-lo como uma virtude: racionalmente inferior a um cético, e espiritualmente menor que um poeta, não vê que sua empresa é vã e absurda... Não sendo um veterano do non-sense, o cientista e o filósofo - salvo raríssimas exceções -, acreditam avançar, através de sua obra, arrastando consigo toda humanidade, rumo a um (semi)Absoluto positivizado: a virtude da esterilidade não é seu forte... (Como criar um energúmeno? Resposta: dê-lhe um método pré-estabelecido e uma direção falsificada!) Todavia, suponhamos que tal homem saiba de sua condição de fantoche acadêmico e que, no entanto, continue prestando sua contribuição ao desfile geral dos saltimbancos do logos apenas por conveniência: isso, sem dúvida, lhe daria algum prestígio diante de nós - os desacreditados; porém, este ser não merece os louros de nosso brasão: ele ainda produz! Tal espírito, já nos primórdios de sua formação, não possuiu a potência de se elevar acima dos propagadores da fachada universal, ele se adornou dos falsos artifícios propostos por eles... Aliás, tal lástima é verificável em hippies, engenheiros, etc. Mais especificamente: em todo lugar onde alguém assuma uma posição determinada. Tal ser não teve o dom ou a competência de tirar as últimas conseqüências daquilo que, certamente, manifestava-se nele como uma leve desconfiança ou intuição que, como sabemos, caso levada a sério, faria com que ele se libertasse de todo empreendimento de patamar teórico e de toda espécie de tentativa de explicar o real. Seja pela superstição ou pela matemática, um posicionamento qualquer deriva de uma subordinação frívola! Tal ser teria, caso sua potência não fosse de segunda grandeza e recalcada, deixado de lado tais especulações e, seguindo o exemplo do protagonista de Cândido, tornar-se-ia jardineiro - ou um agricultor rudimentar...
Meus heróis fugiram do ginásio! A prudência recomendada pelos seus arautos pais, mestres e professores recebeu o desprezo que, de fato, mereciam... Eles não se curvaram perante a injustificabilíssima “necessidade”... Sua potência era sadia, sua desconfiança imperscrutável, tiraram as últimas conseqüências e se não são livres no campo de suas ações, se não dão livre curso à grande intensidade de seu pulsar é porque a polícia e o tribunal os impedem.... Sim, sofremos com isso! E se não podemos dar vazão a nossas epifanias estomacais, somos, ao menos, livres no campo das idéias: jamais fomos reféns de postulados e axiomas, fizemos do Absurdo nossa morada e nos acostumamos a habitar o Impossível.... Estamos acima da humanidade e ela não nos perdoará por isso!
Morremos de rir ao adentrar numa sala de aula, ao ver tantas vidas desperdiçadas ante um quadro negro. Eu, particularmente, gosto de assistir a palestras ministradas por doutos homens de Letras: suas aporias me fazem cócegas! É comum eu rir da cara deles; e também é comum eles se sentirem nus na minha presença... Mas seu charlatanismo é perspicaz e eles têm todo um rebanho em que se apoiar... Raras vezes eu consegui desconsertar um palestrante a ponto de ele não conseguir dar seqüência a seu sofismo. Nessas raras vezes, confesso ter me sentido um pouquinho mal - pensava: “pobre homem, precisa ganhar a vida... está trabalhando!”. Porém, este pensamento durava poucos minutos e eu era obrigado a rir novamente. A verdade é que não consigo ter um legítimo respeito por um homem que se presta a este tipo de empreendimento...
Meus heróis fugiram do ginásio! A prudência recomendada pelos seus arautos pais, mestres e professores recebeu o desprezo que, de fato, mereciam... Eles não se curvaram perante a injustificabilíssima “necessidade”... Sua potência era sadia, sua desconfiança imperscrutável, tiraram as últimas conseqüências e se não são livres no campo de suas ações, se não dão livre curso à grande intensidade de seu pulsar é porque a polícia e o tribunal os impedem.... Sim, sofremos com isso! E se não podemos dar vazão a nossas epifanias estomacais, somos, ao menos, livres no campo das idéias: jamais fomos reféns de postulados e axiomas, fizemos do Absurdo nossa morada e nos acostumamos a habitar o Impossível.... Estamos acima da humanidade e ela não nos perdoará por isso!
Morremos de rir ao adentrar numa sala de aula, ao ver tantas vidas desperdiçadas ante um quadro negro. Eu, particularmente, gosto de assistir a palestras ministradas por doutos homens de Letras: suas aporias me fazem cócegas! É comum eu rir da cara deles; e também é comum eles se sentirem nus na minha presença... Mas seu charlatanismo é perspicaz e eles têm todo um rebanho em que se apoiar... Raras vezes eu consegui desconsertar um palestrante a ponto de ele não conseguir dar seqüência a seu sofismo. Nessas raras vezes, confesso ter me sentido um pouquinho mal - pensava: “pobre homem, precisa ganhar a vida... está trabalhando!”. Porém, este pensamento durava poucos minutos e eu era obrigado a rir novamente. A verdade é que não consigo ter um legítimo respeito por um homem que se presta a este tipo de empreendimento...
O segredo do prazer
Todo prazer depende de um sofrimento prévio, assim como a sombra depende da luz. O sofrimento é o a priori do prazer! Acontece, no fumo, que, quando sopramos a fumaça, o prazer que nos advém é decorrente do seguinte: nosso organismo agoniza com as toxinas do tabaco e quando a exalamos de dentro de nós sentimo-nos aliviados. E o mesmo se passa com tudo: na academia, sentimos bem estar depois de muito sacrifício; na escola, após árduos exercícios de fixação da informação, sentimo-nos contentes em ver que, finalmente, assimilamos um determinado conteúdo; e a própria fome é, desde Epicuro, considerada o melhor tempero da comida.
Existe uma balança que pesa as coisas: depois de ralar carregando pedras debaixo do sol durante horas a fio, sentimo-nos felicíssimos com um simples copo de água. É mesmo compreensível por que o dinheiro não traz a felicidade: só a obtemos em pequenas doses e sempre, irremediavelmente, depois de um sofrimento prévio. As doses de bem-estar e de prazer intercalam-se com nossos incômodos e desprazeres: é como se o ser sofresse da patologia de ser bipolar. Oscilando entre a alegria e a tristeza, entre o prazer e a dor haveria um equilíbrio, uma espécie de meio-termo como aquele idealizado por Aristóteles? Isso parece ser pouco provável e efetivamente difícil de ser alcançado. Afinal, a maioria dos homens, por falta de gana ou devido a contingências, se entregam à desmesura: seja essa o excesso ou a falta. Seria preciso sonhar com um mestre da ponderação, um ser idealmente virtuoso para concebermos um meio-termo e equilíbrio tão perfeitos que capazes de condecorar o seu protagonista com um emblema de cidadão feliz - título inédito na História.
Existe uma balança que pesa as coisas: depois de ralar carregando pedras debaixo do sol durante horas a fio, sentimo-nos felicíssimos com um simples copo de água. É mesmo compreensível por que o dinheiro não traz a felicidade: só a obtemos em pequenas doses e sempre, irremediavelmente, depois de um sofrimento prévio. As doses de bem-estar e de prazer intercalam-se com nossos incômodos e desprazeres: é como se o ser sofresse da patologia de ser bipolar. Oscilando entre a alegria e a tristeza, entre o prazer e a dor haveria um equilíbrio, uma espécie de meio-termo como aquele idealizado por Aristóteles? Isso parece ser pouco provável e efetivamente difícil de ser alcançado. Afinal, a maioria dos homens, por falta de gana ou devido a contingências, se entregam à desmesura: seja essa o excesso ou a falta. Seria preciso sonhar com um mestre da ponderação, um ser idealmente virtuoso para concebermos um meio-termo e equilíbrio tão perfeitos que capazes de condecorar o seu protagonista com um emblema de cidadão feliz - título inédito na História.
A plebe e o poder
Todo ser nobre de espírito que trava convívio com a sociedade está irremediavelmente condenado à degradação. “Ninguém pode ser feliz”: esta é uma afirmação categórica subliminar e irrefutável latente na sociedade, é uma regra universal que não pode ser quebrada no contexto social contemporâneo, a não ser por um preço altíssimo.
Existe uma inveja que envenena e clama por vingança... ela traça, com auxílio da prudência, ferramenta crucial a todo ser impotente, mil artifícios e dissimulações para degenerar a vitalidade de todo ser superior que atreve-se, geralmente por ingenuidade, a ser feliz. Os escravos do demônio mataram os filhos de deus. Predominam os tipos plebeus, ressentidos e infelizes que, impotentes, necessitam de um pacto coletivo - pacto esse que caracteriza as normas da sociedade e confunde-se com o próprio contratualismo - para existirem e proliferarem sua anemia em todos os espíritos.
O cristianismo, essa escola de valores plebeus, grita em alto e bom som: “só se será feliz em outra vida!”.
O homem afortunado, bem dotado e feliz que se atrever a demonstrar sua superioridade frente à mendicância espiritual coletiva será reprimido drasticamente: a moral escrava implantará - ou já implantou - nele mecanismos de repressão tão severos que chegam ao patamar da fisiologia... O superego é o castigador fisiológico do nobre, do superior, do belo... Ora, todo fraco necessita de artifícios extras para competir com o forte..., a moral que predomina atualmente, escrava, plebéia e hipócrita que é, forjou valores que garantissem uma vingança suja contra tudo aquilo que era bom, nobre, honrado, belo e feliz... dessa forma vingaram-se da criatura, mas sua projeção sempre foi o Criador: foi Ele, ou o Acaso, quem fabricou a beleza e a força opondo-as à fraqueza e à feiúra.
Assim, o homem fraco e feio, ressentido pelo Acaso/Criador tê-lo colocado no mundo para testemunhar a boa sorte alheia, resolve vingar-se da Vida, da qual se considera, não sem razão, vítima... Cria, então, mecanismos para efetivar tal vingança: os indigentes pariram, desta forma, a moral cristã... Essa era útil a eles: “os últimos serão os primeiros”, “o sofredor será recompensado”... A compaixão foi assim transformada numa virtude... Mas, compaixão para com quem? Ora, para com os inferiores. Assim, em vez de serem subjugados e desprezados, os infelizes são agora venerados... coitadinhos...
O homem belo, superior, agraciado pelo Acaso ou por Deus, tem agora uma dívida para com o desafortunado: eis a grande conquista do rebanho! Isto é um fato que se encontra na raiz da ética e da moral contemporâneas... qualquer desvio e infração a este princípio corrupto é violentamente censurado..., tal censura pode ser externa, partindo da sociedade, ou interna, partindo do superego... Nesse contexto a modéstia e a humildade são consideradas virtudes e, assim, todo ser casualmente afortunado, dotado de vitalidade, beleza e, numa palavra, de superioridade, é considerado culpado tanto pela coletividade, caso a demonstre, quanto por si mesmo, caso a sinta e tenha um superego normal... Eis o triunfo dos plebeus: o nobre está impossibilitado de exercer seus dotes!
A rejeição, mesmo ingênua, a este tipo de princípio ético, é tão reprimida que degenera o corpo, a mente e, em suma, o espírito de todo aquele que a pratique (mesmo em pensamento). Aquele que materializa a rejeição a essa imposição plebéia, aquele que nega a pobreza axiomática do espírito, evidencia um desvio comportamental tão louvável quanto inadmissível: por não se enquadrar no sistema da plebe será apartado do convívio social: sanatório, prisão e cemitério: eis o destino dos nobres...
Existe uma inveja que envenena e clama por vingança... ela traça, com auxílio da prudência, ferramenta crucial a todo ser impotente, mil artifícios e dissimulações para degenerar a vitalidade de todo ser superior que atreve-se, geralmente por ingenuidade, a ser feliz. Os escravos do demônio mataram os filhos de deus. Predominam os tipos plebeus, ressentidos e infelizes que, impotentes, necessitam de um pacto coletivo - pacto esse que caracteriza as normas da sociedade e confunde-se com o próprio contratualismo - para existirem e proliferarem sua anemia em todos os espíritos.
O cristianismo, essa escola de valores plebeus, grita em alto e bom som: “só se será feliz em outra vida!”.
O homem afortunado, bem dotado e feliz que se atrever a demonstrar sua superioridade frente à mendicância espiritual coletiva será reprimido drasticamente: a moral escrava implantará - ou já implantou - nele mecanismos de repressão tão severos que chegam ao patamar da fisiologia... O superego é o castigador fisiológico do nobre, do superior, do belo... Ora, todo fraco necessita de artifícios extras para competir com o forte..., a moral que predomina atualmente, escrava, plebéia e hipócrita que é, forjou valores que garantissem uma vingança suja contra tudo aquilo que era bom, nobre, honrado, belo e feliz... dessa forma vingaram-se da criatura, mas sua projeção sempre foi o Criador: foi Ele, ou o Acaso, quem fabricou a beleza e a força opondo-as à fraqueza e à feiúra.
Assim, o homem fraco e feio, ressentido pelo Acaso/Criador tê-lo colocado no mundo para testemunhar a boa sorte alheia, resolve vingar-se da Vida, da qual se considera, não sem razão, vítima... Cria, então, mecanismos para efetivar tal vingança: os indigentes pariram, desta forma, a moral cristã... Essa era útil a eles: “os últimos serão os primeiros”, “o sofredor será recompensado”... A compaixão foi assim transformada numa virtude... Mas, compaixão para com quem? Ora, para com os inferiores. Assim, em vez de serem subjugados e desprezados, os infelizes são agora venerados... coitadinhos...
O homem belo, superior, agraciado pelo Acaso ou por Deus, tem agora uma dívida para com o desafortunado: eis a grande conquista do rebanho! Isto é um fato que se encontra na raiz da ética e da moral contemporâneas... qualquer desvio e infração a este princípio corrupto é violentamente censurado..., tal censura pode ser externa, partindo da sociedade, ou interna, partindo do superego... Nesse contexto a modéstia e a humildade são consideradas virtudes e, assim, todo ser casualmente afortunado, dotado de vitalidade, beleza e, numa palavra, de superioridade, é considerado culpado tanto pela coletividade, caso a demonstre, quanto por si mesmo, caso a sinta e tenha um superego normal... Eis o triunfo dos plebeus: o nobre está impossibilitado de exercer seus dotes!
A rejeição, mesmo ingênua, a este tipo de princípio ético, é tão reprimida que degenera o corpo, a mente e, em suma, o espírito de todo aquele que a pratique (mesmo em pensamento). Aquele que materializa a rejeição a essa imposição plebéia, aquele que nega a pobreza axiomática do espírito, evidencia um desvio comportamental tão louvável quanto inadmissível: por não se enquadrar no sistema da plebe será apartado do convívio social: sanatório, prisão e cemitério: eis o destino dos nobres...
Suicídio e economia
O fato de todas as manhãs eu acordar sem saber se suportarei continuar existindo, faz com que, diariamente, eu gaste dinheiro de forma indiscriminada. Na verdade, nunca abro mão de satisfazer determinado gosto; compro mesmo qualquer coisa que eu verdadeiramente deseje. De modo especial, a industria têxtil se beneficia com minha compulsão ao auto-extermínio: é que, por cogitar constantemente a possibilidade de me matar, quando vou ao meu guarda-roupa acabo por escolher, sempre, minhas melhores vestimentas. A possibilidade real do suicídio, uma vez assumida, coloca seu provável protagonista numa situação existencial ímpar: se vou dar cabo de mim mesmo, que deixe, pelo menos, a poupança vazia! Acontece que, agindo dessa forma, nos deparamos mui freqüentemente com situações deliciosas, fruto de nossa audácia (do carpe diem). Assim, acabamos por reconsiderar nosso projeto e protelamos nossa queda no nada. Todavia, basta o tédio se reinstalar em nosso espírito e já pensamos, de novo, na abolição suprema. Novamente, “se vamos desaparecer, destruamos primeiramente nossa conta bancária”; e, outra vez, entregues ao prazer hedonista do consumo, repensamos nosso caso e decidimos “tentar novamente”, existir mais por tempo indeterminado. E, desta forma, fanfarrões instalados dentro deste processo cíclico, duramos anos e anos...)
Sobre a decadência
Seu odor está em toda parte. Asfixiando, cortando, colando... Movendo, se confunde com o próprio movimento. A Decadência é um conceito complexo; não significa simplesmente a ruína dos ideais que moviam o mundo, mas, acima disso, a sua substituição. Pelo que? Depende de lugar, tempo, circunstâncias: o relativismo brilha nas trevas contemporâneas como um axioma lunar! Um primeiro sintoma de declínio da civilização ocidental foi a crescente visita ao ocidente: apropriamo-nos de sua medicina, de sua música, de sua culinária, de sua cultura. Hoje, compramos Yoga e Yakisoba em cada esquina de nossas capitais. Mas tal fenômeno não foi suficiente para oferecer ao ocidente uma efetiva mudança de paradigma existencial; apenas contribuindo para tornar nossa (auto)imagem mais caótica e fragmentada.
Diante dessa realidade que se dilui para se converter em nada, que devemos esperar? O sangue com o qual foi escrita a História, sempre foi justificado pela idéia de progresso. E agora que tudo se converteu em piada de mau gosto? Onde acharemos fôlego para continuar nosso carnaval espaço-temporal? Que deus terá ainda a coragem de nos permitir que o cultuemos? A ciência, trôpega, desprestigiada, não oferece mais abrigo. A fé parece ser a única possibilidade de ação humana. Onde encontrá-la sem se auto-ridicularizar?
Diante dessa realidade que se dilui para se converter em nada, que devemos esperar? O sangue com o qual foi escrita a História, sempre foi justificado pela idéia de progresso. E agora que tudo se converteu em piada de mau gosto? Onde acharemos fôlego para continuar nosso carnaval espaço-temporal? Que deus terá ainda a coragem de nos permitir que o cultuemos? A ciência, trôpega, desprestigiada, não oferece mais abrigo. A fé parece ser a única possibilidade de ação humana. Onde encontrá-la sem se auto-ridicularizar?
Um olhar sobre-humano
Desprezo por todas as coisas derivadas do gênero humano, inclusive por ele próprio: esta é uma das definições mais passíveis de explicar meus sentimentos atuais.
Toda empresa construída, toda bandeira empunhada em nome de algum propósito, seja este qual for, remetem necessariamente seus partidários ou protagonistas à ignomínia da ação. Digo “ignomínia da ação” porque é justamente a ação humana que apodrece o mundo (os buracos na camada de ozônio, a extinção de diversos seres, o capitalismo, as guerras..., provam isto, absolutamente). Logo, todo aquele que prospera, insiste e produz neste mundo, está em conivência com a podridão que lhe é imanente. Assim, apenas o louco incurável, aquele que “não vive neste mundo” é portador de dignidade, é o único que merece ter a (in)consciência limpa e habitar o paraíso bíblico, caso ele exista. Em termos de virtude, o lunático é o Sócrates pós-moderno: um por ideal, outro por disfunção psíquica, ambos abandonaram este mundo em nome da Justiça.
A vida não tem cura. Construamos, em nome de um antídoto ideal, toda sorte de filosofias, doutrinas, códigos éticos e morais, igrejas e penitenciárias..., não chegaremos jamais a lugar algum: justiça e respiração são incompatíveis!
A superioridade do anarco-niilista em relação ao democrata, ao socialista/comunista, torna-se evidente quando se vê estampado no rosto desses últimos um otimismo insensato que, garantido pela canonização da apostila marxista, faz deste tipo uma espécie de herói institucionalizado, cuja fé numa revolução redentora - fé tão inquebrantável quanto estúpida - só pode ser produto de sua ingenuidade ou fraqueza... Já a amargura pontual do anarquista/niilista é sinal da coerência com que este lê o mundo: demasiado conhecedor da natureza humana e familiarizado com o Inevitável, está a um passo do asceta - uma vez que a era moderna o impossibilita de atingir a saúde dos cínicos. Ele captou a nulidade de todo gesto, de todo substantivo e de todo empreendimento. Seu sarcasmo redentor funciona como uma ferramenta que permite que ele continue respirando.
Ainda sem nos desprendermos de tipos interessantes, voltemos nossos olhos ao misantropo. Estando em harmonia com seus instintos ele vê o ser social como uma espécie de eunuco: castrado e submisso. O misantropo verdadeiro não consegue dissimular seu asco em relação ao conjunto social e a todo aquele que se acredita cidadão - no sentido pleno da palavra-, só deixando de sentir nojo quando ele passa a proporcioná-lo: conheço um que, embora se dissimule bem, adora vomitar em público, fazer gestos repulsivos e, sempre que possível, dizer coisas desagradáveis. A misantropia, certamente, advém da - ou implica a - não subordinação aos costumes, padrões e códigos éticos. Portanto: só é concebível em indivíduos não adestrados/adestráveis...
Toda empresa construída, toda bandeira empunhada em nome de algum propósito, seja este qual for, remetem necessariamente seus partidários ou protagonistas à ignomínia da ação. Digo “ignomínia da ação” porque é justamente a ação humana que apodrece o mundo (os buracos na camada de ozônio, a extinção de diversos seres, o capitalismo, as guerras..., provam isto, absolutamente). Logo, todo aquele que prospera, insiste e produz neste mundo, está em conivência com a podridão que lhe é imanente. Assim, apenas o louco incurável, aquele que “não vive neste mundo” é portador de dignidade, é o único que merece ter a (in)consciência limpa e habitar o paraíso bíblico, caso ele exista. Em termos de virtude, o lunático é o Sócrates pós-moderno: um por ideal, outro por disfunção psíquica, ambos abandonaram este mundo em nome da Justiça.
A vida não tem cura. Construamos, em nome de um antídoto ideal, toda sorte de filosofias, doutrinas, códigos éticos e morais, igrejas e penitenciárias..., não chegaremos jamais a lugar algum: justiça e respiração são incompatíveis!
A superioridade do anarco-niilista em relação ao democrata, ao socialista/comunista, torna-se evidente quando se vê estampado no rosto desses últimos um otimismo insensato que, garantido pela canonização da apostila marxista, faz deste tipo uma espécie de herói institucionalizado, cuja fé numa revolução redentora - fé tão inquebrantável quanto estúpida - só pode ser produto de sua ingenuidade ou fraqueza... Já a amargura pontual do anarquista/niilista é sinal da coerência com que este lê o mundo: demasiado conhecedor da natureza humana e familiarizado com o Inevitável, está a um passo do asceta - uma vez que a era moderna o impossibilita de atingir a saúde dos cínicos. Ele captou a nulidade de todo gesto, de todo substantivo e de todo empreendimento. Seu sarcasmo redentor funciona como uma ferramenta que permite que ele continue respirando.
Ainda sem nos desprendermos de tipos interessantes, voltemos nossos olhos ao misantropo. Estando em harmonia com seus instintos ele vê o ser social como uma espécie de eunuco: castrado e submisso. O misantropo verdadeiro não consegue dissimular seu asco em relação ao conjunto social e a todo aquele que se acredita cidadão - no sentido pleno da palavra-, só deixando de sentir nojo quando ele passa a proporcioná-lo: conheço um que, embora se dissimule bem, adora vomitar em público, fazer gestos repulsivos e, sempre que possível, dizer coisas desagradáveis. A misantropia, certamente, advém da - ou implica a - não subordinação aos costumes, padrões e códigos éticos. Portanto: só é concebível em indivíduos não adestrados/adestráveis...
A razão de seres
Caiu. E, muito azarado, quebrou as patas. Uma vez quebradas e já não tendo a antiga e versátil utilidade, denominou-as pernas. Invejoso dos outros que se moviam de maneira organicamente natural e impotente de imitá-los, além de vítima mais fácil de predadores, inventou a prudência: produto indesejado de sua deficiência.
Enquanto os seus semelhantes gozavam de plena saúde, movendo-se em árvores e respirando como elas, ele, debilitado e lançado ao exercício involuntário da contemplação, passou a ter idéias. E, doente, via na árvore algo incompatível com seu ser; então, cortando a árvore, adaptou-a a seu debilitado estado: nasce a “idéia de cadeira”.
Ao vê-lo sentado alguns de seus semelhantes, indignados por ter-lhes cortado a árvore, foram se queixar. Envergonhado daquilo em que se tornara, e tentando evitar uma próxima queixa, desenvolveu estudos através dos quais conseguiu arquitetar uma caixa mais ou menos grande, que mais tarde denominou “casa”, para se esconder dos seus semelhantes: criminoso, pariu a geometria e a propriedade privada.
Ali confinado atraiu curiosos que deixaram-se persuadir pelas supostas vantagens da prudência e de seus posteriores produtos: da cadeira, da casa própria e da geometria. Estes curiosos, sem saber que tais invenções derivavam da patologia de um símio enrustido, tornam-se partidários inconscientes de uma espécie de “lepra espiritual”. Assim, decidiram voluntariamente trocar as patas por pernas e formaram um grupo que, com o passar dos tempos e devido à hereditariedade, proliferou nas gerações seguintes os seus métodos artificiais de subsistência que, posteriormente, denominaram (de) cultura.
A centésima quinta geração que os sucedeu já estava total e biologicamente incapacitada de uma saúde efetiva; epileticamente civilizados e impossibilitados de competir com os outros seres por alimentos, inventaram técnicas de cultivo compatíveis com a sua atrofia: surge a agricultura e a pecuária.
Déspotas orgulhosos de sua miopia molecular, “evoluíram” e proliferaram-se mais e mais através dos tempos... Bem vindos ao século XXI!
Enquanto os seus semelhantes gozavam de plena saúde, movendo-se em árvores e respirando como elas, ele, debilitado e lançado ao exercício involuntário da contemplação, passou a ter idéias. E, doente, via na árvore algo incompatível com seu ser; então, cortando a árvore, adaptou-a a seu debilitado estado: nasce a “idéia de cadeira”.
Ao vê-lo sentado alguns de seus semelhantes, indignados por ter-lhes cortado a árvore, foram se queixar. Envergonhado daquilo em que se tornara, e tentando evitar uma próxima queixa, desenvolveu estudos através dos quais conseguiu arquitetar uma caixa mais ou menos grande, que mais tarde denominou “casa”, para se esconder dos seus semelhantes: criminoso, pariu a geometria e a propriedade privada.
Ali confinado atraiu curiosos que deixaram-se persuadir pelas supostas vantagens da prudência e de seus posteriores produtos: da cadeira, da casa própria e da geometria. Estes curiosos, sem saber que tais invenções derivavam da patologia de um símio enrustido, tornam-se partidários inconscientes de uma espécie de “lepra espiritual”. Assim, decidiram voluntariamente trocar as patas por pernas e formaram um grupo que, com o passar dos tempos e devido à hereditariedade, proliferou nas gerações seguintes os seus métodos artificiais de subsistência que, posteriormente, denominaram (de) cultura.
A centésima quinta geração que os sucedeu já estava total e biologicamente incapacitada de uma saúde efetiva; epileticamente civilizados e impossibilitados de competir com os outros seres por alimentos, inventaram técnicas de cultivo compatíveis com a sua atrofia: surge a agricultura e a pecuária.
Déspotas orgulhosos de sua miopia molecular, “evoluíram” e proliferaram-se mais e mais através dos tempos... Bem vindos ao século XXI!
Ser e não-ser: a questão
Olhando um cavalo, mero objeto e simples representação sensível, o transcendo: julgo alcançar-lhe a essência - axioma elementar à constituição da ciência - e afirmo: “é um animal”. Posteriormente, de maneira muito convencional, classifico-o como mamífero, eqüino, etc; da mesma forma, ao ver meu vizinho, João, digo: “João é um ser humano”. De forma análoga, ao ver uma mesa digo: “isto é uma mesa”.
Enquanto concebemos o axioma da essência as coisas estão a salvo... mas, longe da transcendência e do mundo ideal, sofremos as vertigens da realidade imediata e sensível. O vir a ser; o ser não-sendo; o ser em potencial e o não-ser em potencial. Eis, diante de nossos olhos, as coisas sendo e não-sendo, o devir mesmo: mesa virando fogueira, cavalo virando mortadela, João virando adubo...
Neste momento entram em cena os partidários dos quatro elementos, da mônada e demais frivolidades. Eles nos dizem, em seus mil discursos forjados de rigor e eloqüência, que as coisas são eternas e que são regidas por leis universais e, enquanto existentes na estrutura de um cosmos arimetizável, podemos sobre elas construir conhecimento - mera catalogação de seus movimentos aparentes! Assim, jogando uma pedra para cima afirmamos com a máxima segurança newtoniana que ela cairá no chão. Orgulhosos de nossa capacidade racional, transcendemos a pedra ao universal e projetamos a lei de causa e efeito até o infinito.
(Cansado deste carnaval irrisório sonho com o dia em que esta maldita pedra não caia mais...
Para meu deleite pessoal, inventei uma espécie de genealogia cômica do logos: imagino, numa época distante, um homem obsoleto, sisudo e desengonçado, vibrando em meio às quatro estações com uma ampulheta em punhos e fazendo discursos honoráveis sobre as absurdas constituições da Criação. Seria este o primeiro filósofo?)
O homem - baliza caótica de todas as coisas -, em seus suspiros aveludados, idealizou a Igualdade, a Grandeza, a Beleza, a Unidade e suas posteriores máscaras: o quilo, o metro, o grau, o jaule, o watt, a identidade... E nesse surto organizatório o homem se divorciou da zoologia, proclamou o artificial e mecanizou o espírito.
Aquele que concebe o ideal como sendo o real está, em si mesmo, exilado de si mesmo. Tal homem proclama num monólogo inconsciente: “sou um mero objeto de uma substância estranha que, apartada fisiologicamente de mim, me sustenta e diminui, me oprime e eterniza: a Idéia”. Medíocre, acredita ter saído da caverna quando na verdade contenta-se com sua condição de mera representação de si mesmo; sendo, portanto, um transeunte da mentira: uma vez que, para ele, a verdade não se encontra neste mundo. Mas é feliz e acredita na estabilidade das coisas. Partidário do especismo, sua arrogância faz com que ele se sinta o mais importante dos seres: pensa que o mundo gira em torno dele.
Já aquele que possui antenas sobressalentes é cético e capta a nulidade edulcorada dos conceitos. Sua insubordinação metafísica faz com que ele caminhe trôpego sobre a Matéria; indiferente em meio à feira dos tempos, ao desfile fúnebre da História e aos saltimbancos contemporâneos, despreza tudo secretamente. Vítima de sua própria coerência, inflado de oxigênio e náuseas, tem na dissimulação a única possibilidade de interação social com os seus “semelhantes”. Esboço fenomênico de um Vazio sem nome está divorciado de Deus e seus fantoches: as letras de seu nome acarretam a nulidade enfadonha do Saara; a secura de seus olhos resplandece o estado petrificado de sua alma.
Devido aos seus delírios de eutanásia e ao peso de seus crimes não praticados, ele é o ser com mais alto potencial de não-ser. Assim como o planeta ele pode ser lançado ao infinito abismo do vazio: um pela forca e o outro pela bomba atômica, ambos exibem o não-ser em potencial...
(Para ele as pedras já não caem!)
Enquanto concebemos o axioma da essência as coisas estão a salvo... mas, longe da transcendência e do mundo ideal, sofremos as vertigens da realidade imediata e sensível. O vir a ser; o ser não-sendo; o ser em potencial e o não-ser em potencial. Eis, diante de nossos olhos, as coisas sendo e não-sendo, o devir mesmo: mesa virando fogueira, cavalo virando mortadela, João virando adubo...
Neste momento entram em cena os partidários dos quatro elementos, da mônada e demais frivolidades. Eles nos dizem, em seus mil discursos forjados de rigor e eloqüência, que as coisas são eternas e que são regidas por leis universais e, enquanto existentes na estrutura de um cosmos arimetizável, podemos sobre elas construir conhecimento - mera catalogação de seus movimentos aparentes! Assim, jogando uma pedra para cima afirmamos com a máxima segurança newtoniana que ela cairá no chão. Orgulhosos de nossa capacidade racional, transcendemos a pedra ao universal e projetamos a lei de causa e efeito até o infinito.
(Cansado deste carnaval irrisório sonho com o dia em que esta maldita pedra não caia mais...
Para meu deleite pessoal, inventei uma espécie de genealogia cômica do logos: imagino, numa época distante, um homem obsoleto, sisudo e desengonçado, vibrando em meio às quatro estações com uma ampulheta em punhos e fazendo discursos honoráveis sobre as absurdas constituições da Criação. Seria este o primeiro filósofo?)
O homem - baliza caótica de todas as coisas -, em seus suspiros aveludados, idealizou a Igualdade, a Grandeza, a Beleza, a Unidade e suas posteriores máscaras: o quilo, o metro, o grau, o jaule, o watt, a identidade... E nesse surto organizatório o homem se divorciou da zoologia, proclamou o artificial e mecanizou o espírito.
Aquele que concebe o ideal como sendo o real está, em si mesmo, exilado de si mesmo. Tal homem proclama num monólogo inconsciente: “sou um mero objeto de uma substância estranha que, apartada fisiologicamente de mim, me sustenta e diminui, me oprime e eterniza: a Idéia”. Medíocre, acredita ter saído da caverna quando na verdade contenta-se com sua condição de mera representação de si mesmo; sendo, portanto, um transeunte da mentira: uma vez que, para ele, a verdade não se encontra neste mundo. Mas é feliz e acredita na estabilidade das coisas. Partidário do especismo, sua arrogância faz com que ele se sinta o mais importante dos seres: pensa que o mundo gira em torno dele.
Já aquele que possui antenas sobressalentes é cético e capta a nulidade edulcorada dos conceitos. Sua insubordinação metafísica faz com que ele caminhe trôpego sobre a Matéria; indiferente em meio à feira dos tempos, ao desfile fúnebre da História e aos saltimbancos contemporâneos, despreza tudo secretamente. Vítima de sua própria coerência, inflado de oxigênio e náuseas, tem na dissimulação a única possibilidade de interação social com os seus “semelhantes”. Esboço fenomênico de um Vazio sem nome está divorciado de Deus e seus fantoches: as letras de seu nome acarretam a nulidade enfadonha do Saara; a secura de seus olhos resplandece o estado petrificado de sua alma.
Devido aos seus delírios de eutanásia e ao peso de seus crimes não praticados, ele é o ser com mais alto potencial de não-ser. Assim como o planeta ele pode ser lançado ao infinito abismo do vazio: um pela forca e o outro pela bomba atômica, ambos exibem o não-ser em potencial...
(Para ele as pedras já não caem!)
A Dissolução da semântica
Minha pretensão: evidenciar que a linguagem humana, enquanto construção sígnica artificial, pretende ser rival das coisas-em-si (simulacros-entes empíricos), nos divorciando destas e da realidade (imediatamente) natural. A linguagem, na medida em que representa, substitui o representado, é a rival absoluta dele. Quero dizer: a linguagem é algo artificial que incessantemente nega e contrapõe-se (virtualmente) ao que é natural - o Mundo: a totalidade de tudo o que é. É ela que, segundo a Bíblia, pretendeu patrocinar uma fuga do Mundo - através dela o homem pretendeu elevar-se acima do Mundo: o seu pleno funcionamento, através da língua, garantiria a construção da Torre de Babel, portanto, remeteria o ser (humano) ao mundo supra-lunar: rejeição absoluta do Mundo. É-nos pois compreensível por que a heterogeneidade da linguagem, sua diversidade manifesta nas diferentes línguas - seu maior empecilho que estanca seu pleno funcionamento - é considerada, na Bíblia, uma obra da Providência. De fato, o mundo estaria perdido se os homens se entendessem plenamente.
Nominalista, eu? Absolutamente não e sim. Difiro destes na exata medida em que não vejo motivos plausíveis para continuarmos alfabetizando crianças. O que elas fizeram para merecer tamanho castigo? Além do mais, os nominalistas, apesar de cônscios do vazio inerente a todo empreendimento semântico, ainda vêem positividade no emprego da linguagem.
Argumentar-se-á, então, que é a linguagem que garante a existência e o funcionamento da civilização. Pois bem, digo que por isso mesmo é que ela deve ser abolida. A civilização ocidental e a manutenção diária do civismo executado por nós com o intuito de preservá-la, parece-me um laborioso esforço em negar o Mundo: tal qual na Torre de Babel, nela carregamos pedras. Todavia, diferentemente destes empreendimentos verticais descritos na Bíblia, a civilização ocidental tem obtido êxito em sua rejeição ao Mundo: “o ser humano já pisou na lua, mas falta-lhe pisar em seu próprio coração”, disse o poeta, e eu assino embaixo.
O funcionamento da dita “ordem”, garantido pela linguagem, molesta todo aquele que ainda está vivo; ou seja, todo aquele que, ainda, possui instintos.
É verdade que o ser humano é considerado racional. Entretanto, é esse adjetivo (“racional”) que tem garantido o seu divórcio da zoologia. Outra vez, a linguagem – no caso, um mero adjetivo - construindo uma barreira sólida entre o homem e o Mundo.
É fato científico que a razão que dizem existir em nós, ocupa no máximo 10% de nossa mente, de nosso ser. Portanto, somos no mínimo 90% não-razão, instinto/inconsciência: somos quase integralmente irracionais, instintivos. Porém, amiúde, negamo-nos a nós mesmos. Esses malditos 10% funcionam, em nossa estrutura ôntica, de modo despótico... são eles que constituem o superego: inimigo mortal de todo espírito livre. Eles são, por meio da linguagem, responsáveis por toda sorte de axiomas: morais, éticos, científicos; são o câncer dos 90%, e o ceticismo hiperbólico é o seu clássico, porém desprestigiado, inimigo/antagonista.
Na verdade, em termos de Mundo, digo, de tudo mesmo, estes 10% são algo irrelevante, eles só existem em nossas cabeças falsificadas/adestradas pela linguagem.
Sim, tudo o que digo se resume em algo totalmente evidente: o signo, a idéia ou o conceito representam algo que não eles mesmos e, portanto, remetem sempre a uma ausência; essa ausência, que é a ausência do objeto em si, é a condição mesma de seu estabelecimento. Assim, o signo, idéia ou conceito rivalizam com as coisas as quais pretendem representar... Nomear uma coisa é, de certo modo, matá-la. É necessária a ausência do significante para que se possa conceber o significado: aquilo que se faz presente fala por si mesmo, não carece de representação simbólica. E isto é um fato que muitos lingüistas e pensadores já haviam se dado conta e que, entretanto, não levaram suficientemente em consideração; pois se o tivessem feito provavelmente reivindicariam a queima das bibliotecas e a destruição das escolas...
Tudo na civilização é uma negação/falsificação/artificialização da existência e muitos dos conceitos que garantem o seu funcionamento são signos sem significado, ou seja, não encontram objeto físico ou fundamento sensível sendo, tão-somente, representações vazias. Até mesmo “árvore”, enquanto palavra, é uma falsificação de árvore enquanto entidade física; pois, enquanto nos remete virtualmente a ela, dela nos divorcia fisicamente. Dizem-nos “pense numa árvore” e o divórcio está consumado: não existe “árvore”, mas sim milhões de viventes do reino vegetal que desconhecemos tanto quanto a nós mesmos e que encerramos sob a pretensão estúpida de um substantivo trivializador.
Representantes de todas as coisas fazemos de todas elas, por meio de nossa linguagem falsificadora, caricaturas grotescas que denominamos signos/idéias/conceitos e vivemos sob o reinado despótico destas caricaturas, acreditando que elas constituem a realidade quando não passam de uma anomalia sublimada por nossa ambição à metafísica. Dar nomes às coisas não é meramente falsificá-las, é também um sintoma megalomaníaco. É uma atividade que requer uma ambição de subjugação das coisas a nossas expectativas tirânicas. A Gramática é uma herança da Metafísica; é, ainda e, sobretudo, Metafísica: apesar de termos assassinado Deus no plano especulativo, estaremos presos na transcendência enquanto insistirmos em utilizar a linguagem... O afásico é o maior de todos os revolucionários; e apenas uma afasia generalizada protagonizaria a verdadeira revolução copernicana no campo filosófico.
Traidor da espécie humana, desmistificador de um antropocentrismo ingênuo, falso profeta de um mundo possível, porém improvável, resta-me sonhar com um dia real e orgânico, longe de constar no calendário, pois divorciado do Tempo, em que o homem, livre do peso de sua milenar ambição megalomaníaca/legisladora/classificatória, fundir-se-á com o Mundo superando, assim, à falaciosa relação sujeito & objeto.
A Verdade, que a Filosofia sempre buscou, é conhecida pelos símios!
Nominalista, eu? Absolutamente não e sim. Difiro destes na exata medida em que não vejo motivos plausíveis para continuarmos alfabetizando crianças. O que elas fizeram para merecer tamanho castigo? Além do mais, os nominalistas, apesar de cônscios do vazio inerente a todo empreendimento semântico, ainda vêem positividade no emprego da linguagem.
Argumentar-se-á, então, que é a linguagem que garante a existência e o funcionamento da civilização. Pois bem, digo que por isso mesmo é que ela deve ser abolida. A civilização ocidental e a manutenção diária do civismo executado por nós com o intuito de preservá-la, parece-me um laborioso esforço em negar o Mundo: tal qual na Torre de Babel, nela carregamos pedras. Todavia, diferentemente destes empreendimentos verticais descritos na Bíblia, a civilização ocidental tem obtido êxito em sua rejeição ao Mundo: “o ser humano já pisou na lua, mas falta-lhe pisar em seu próprio coração”, disse o poeta, e eu assino embaixo.
O funcionamento da dita “ordem”, garantido pela linguagem, molesta todo aquele que ainda está vivo; ou seja, todo aquele que, ainda, possui instintos.
É verdade que o ser humano é considerado racional. Entretanto, é esse adjetivo (“racional”) que tem garantido o seu divórcio da zoologia. Outra vez, a linguagem – no caso, um mero adjetivo - construindo uma barreira sólida entre o homem e o Mundo.
É fato científico que a razão que dizem existir em nós, ocupa no máximo 10% de nossa mente, de nosso ser. Portanto, somos no mínimo 90% não-razão, instinto/inconsciência: somos quase integralmente irracionais, instintivos. Porém, amiúde, negamo-nos a nós mesmos. Esses malditos 10% funcionam, em nossa estrutura ôntica, de modo despótico... são eles que constituem o superego: inimigo mortal de todo espírito livre. Eles são, por meio da linguagem, responsáveis por toda sorte de axiomas: morais, éticos, científicos; são o câncer dos 90%, e o ceticismo hiperbólico é o seu clássico, porém desprestigiado, inimigo/antagonista.
Na verdade, em termos de Mundo, digo, de tudo mesmo, estes 10% são algo irrelevante, eles só existem em nossas cabeças falsificadas/adestradas pela linguagem.
Sim, tudo o que digo se resume em algo totalmente evidente: o signo, a idéia ou o conceito representam algo que não eles mesmos e, portanto, remetem sempre a uma ausência; essa ausência, que é a ausência do objeto em si, é a condição mesma de seu estabelecimento. Assim, o signo, idéia ou conceito rivalizam com as coisas as quais pretendem representar... Nomear uma coisa é, de certo modo, matá-la. É necessária a ausência do significante para que se possa conceber o significado: aquilo que se faz presente fala por si mesmo, não carece de representação simbólica. E isto é um fato que muitos lingüistas e pensadores já haviam se dado conta e que, entretanto, não levaram suficientemente em consideração; pois se o tivessem feito provavelmente reivindicariam a queima das bibliotecas e a destruição das escolas...
Tudo na civilização é uma negação/falsificação/artificialização da existência e muitos dos conceitos que garantem o seu funcionamento são signos sem significado, ou seja, não encontram objeto físico ou fundamento sensível sendo, tão-somente, representações vazias. Até mesmo “árvore”, enquanto palavra, é uma falsificação de árvore enquanto entidade física; pois, enquanto nos remete virtualmente a ela, dela nos divorcia fisicamente. Dizem-nos “pense numa árvore” e o divórcio está consumado: não existe “árvore”, mas sim milhões de viventes do reino vegetal que desconhecemos tanto quanto a nós mesmos e que encerramos sob a pretensão estúpida de um substantivo trivializador.
Representantes de todas as coisas fazemos de todas elas, por meio de nossa linguagem falsificadora, caricaturas grotescas que denominamos signos/idéias/conceitos e vivemos sob o reinado despótico destas caricaturas, acreditando que elas constituem a realidade quando não passam de uma anomalia sublimada por nossa ambição à metafísica. Dar nomes às coisas não é meramente falsificá-las, é também um sintoma megalomaníaco. É uma atividade que requer uma ambição de subjugação das coisas a nossas expectativas tirânicas. A Gramática é uma herança da Metafísica; é, ainda e, sobretudo, Metafísica: apesar de termos assassinado Deus no plano especulativo, estaremos presos na transcendência enquanto insistirmos em utilizar a linguagem... O afásico é o maior de todos os revolucionários; e apenas uma afasia generalizada protagonizaria a verdadeira revolução copernicana no campo filosófico.
Traidor da espécie humana, desmistificador de um antropocentrismo ingênuo, falso profeta de um mundo possível, porém improvável, resta-me sonhar com um dia real e orgânico, longe de constar no calendário, pois divorciado do Tempo, em que o homem, livre do peso de sua milenar ambição megalomaníaca/legisladora/classificatória, fundir-se-á com o Mundo superando, assim, à falaciosa relação sujeito & objeto.
A Verdade, que a Filosofia sempre buscou, é conhecida pelos símios!
A vingança de Franz Krajcberg
No momento conseguinte à desintoxicação da milenar patologia grega, o homem agonizará, juntamente com toda sua cientificidade, implorando amargamente arrependido, aos pés de uma “simples planta” (devidamente catalogada), que ela o perdoe pela insensatez de sua razão clássica ocidental. Virtuosamente ela o fará, produzindo assim, em sua harmonia e simplicidade, o imaculado oxigênio (já em falta); o qual, ao ser inalado por ele, terá o efeito de um gás letal... E o homem então agonizará..., não pelo gás ser letal, como pensou este, mas sim pela árdua consciência de ser indigno de respirá-lo.
Fenomenologia do vazio
Quando eu acreditava em fantasmas,
à noite,
em meu quarto vazio,
tinha motivos para quebrar
a analógica inércia
horizontal da morte,
o sono,
mover a cabeça para os lados
e analisar as trevas
que me circundavam.
Nelas imaginava
enorme população
de seres invisíveis.
Hoje,
homem maduro,
sou o próprio fantasma
no qual não acredito...
sei do,
e durmo no,
vazio de meu quarto.
(Não acreditar
em fantasmas
é, de fato,
estar morto!)
à noite,
em meu quarto vazio,
tinha motivos para quebrar
a analógica inércia
horizontal da morte,
o sono,
mover a cabeça para os lados
e analisar as trevas
que me circundavam.
Nelas imaginava
enorme população
de seres invisíveis.
Hoje,
homem maduro,
sou o próprio fantasma
no qual não acredito...
sei do,
e durmo no,
vazio de meu quarto.
(Não acreditar
em fantasmas
é, de fato,
estar morto!)
Devir-decadência
Sonho com o dia em que me tornarei algo entre o Nada e o Infinito: nulo e inconcebível. Morno e manso como uma pomba grávida, limitar-me-ei a repousar sobre a Matéria. Inquilino omisso de mim mesmo, de paladar desacreditado e eclético, saborearei todos os venenos do acaso e da ampulheta - inimiga malsã do Paraíso e da pachorra.
Hoje o peso de ser - o que sou ou estou sendo - me enche de desespero e me obriga a ter esperanças. Sofro uma dor fisiológica e espiritual proveniente de uma metamorfose sisuda e inevitável.
Apêndice cósmico, vitimizado por um Devir cru e arrebatador que usa a máscara do Tempo para se alimentar de entranhas, espero afoito o seu desenrolar; para no término dessa inflamada mutação perder-me no vão ruminar da dúvida: serei eu min-mesmo? ou (em nome da Saúde) transcendi meu si-mesmo ?
Então, para o pranto da unidade filosófica, a resposta, que é ao mesmo tempo as duas coisas, virá: anti-cartesiana e absurda, evidenciando o sem-sentido indiscreto e irrefutável que habita entre o ser e o não-ser.
Castigo do nascimento e tédio incomensurável, essas aflições constantes e sutis molestam os objetivos e os apegos carnais de todo ser essencialmente delicado: dos barões aos fantoches, basta ter os poros aguçados para sentir a latência deste tumor existencial. Nestes espíritos, demasiado sensíveis, o conhecimento e o delírio mesclam-se fisiologicamente, fundindo sujeito e objeto numa só coisa...
Ruína dos ideais; niilismo orgânico; apoteose de hienas caóticas e maravilhadas; ceticismo celular; irrupção espaço-temporal; carnaval irrisório da razão humana: são todos produtos-dádivas provenientes do deus caos que se derramam como bênçãos goradas sobre fiéis escolhidos por ele sem nenhum critério inteligível.
(Ao cabo do meu pedagógico e involuntário auto-martírio-molecular, constatarei pouco entusiasmado que me tornei um tipo de palhaço: cético, indiferente e erudito. Contemplador insolúvel da Tragédia - finalidade última de todas as coisas nobres - é dela que ousarei extrair um bom humor debilitado e sóbrio, afim de unicamente suavizar o sofrimento axiomático de todos aqueles que, ébrios de si mesmos, sustentarem meu discurso frio e engraçado...
Atrever-me-ei, pois, a ser: isto.)
Hoje o peso de ser - o que sou ou estou sendo - me enche de desespero e me obriga a ter esperanças. Sofro uma dor fisiológica e espiritual proveniente de uma metamorfose sisuda e inevitável.
Apêndice cósmico, vitimizado por um Devir cru e arrebatador que usa a máscara do Tempo para se alimentar de entranhas, espero afoito o seu desenrolar; para no término dessa inflamada mutação perder-me no vão ruminar da dúvida: serei eu min-mesmo? ou (em nome da Saúde) transcendi meu si-mesmo ?
Então, para o pranto da unidade filosófica, a resposta, que é ao mesmo tempo as duas coisas, virá: anti-cartesiana e absurda, evidenciando o sem-sentido indiscreto e irrefutável que habita entre o ser e o não-ser.
Castigo do nascimento e tédio incomensurável, essas aflições constantes e sutis molestam os objetivos e os apegos carnais de todo ser essencialmente delicado: dos barões aos fantoches, basta ter os poros aguçados para sentir a latência deste tumor existencial. Nestes espíritos, demasiado sensíveis, o conhecimento e o delírio mesclam-se fisiologicamente, fundindo sujeito e objeto numa só coisa...
Ruína dos ideais; niilismo orgânico; apoteose de hienas caóticas e maravilhadas; ceticismo celular; irrupção espaço-temporal; carnaval irrisório da razão humana: são todos produtos-dádivas provenientes do deus caos que se derramam como bênçãos goradas sobre fiéis escolhidos por ele sem nenhum critério inteligível.
(Ao cabo do meu pedagógico e involuntário auto-martírio-molecular, constatarei pouco entusiasmado que me tornei um tipo de palhaço: cético, indiferente e erudito. Contemplador insolúvel da Tragédia - finalidade última de todas as coisas nobres - é dela que ousarei extrair um bom humor debilitado e sóbrio, afim de unicamente suavizar o sofrimento axiomático de todos aqueles que, ébrios de si mesmos, sustentarem meu discurso frio e engraçado...
Atrever-me-ei, pois, a ser: isto.)
Monólogo de um poeta maldito
O país perdido de teus órgãos desarmônicos desperta em meio à geração nova; ela traz flores impossíveis e imaculadas. Teus rins, no vácuo interno do teu corpo, contemplam adormecidos o florir dos jovens lançados no absurdo turbilhão das esperanças novas, todos envoltos em frivolidades primaveris.
Teus passos desperdiçados por tua estrada insana perguntam ao silêncio de teus lábios secos o eterno porquê das coisas..., mas o sangue não derramado de teus ideais nulos revelam, em segredo, à tua alma de bicho virgem, a falta de nexo fúnebre de teus raciocínios vãos.
E é assim que tua alma, petrificada por conveniência, evidencia a pedagogia sinistra de tua postura atual a todos estes novos transeuntes da existência que, ludibriados pela vitalidade de seus próprios hormônios, ainda conseguem se apavorar ao ver-te no exercício de tua mais alta liberdade: escarrar na presença deles.
Ao passo em que tuas mãos perfeitas se ocupam de frivolidades, teu peito dorme em meio aos afazeres desta vida crua, onde teus braços se ocupam de tua subsistência e tua mente divaga por entre abismos sólidos. E, enquanto a lucidez te apunhala, teu coração se assemelha a uma goiaba molestada por larvas sádicas.
Neste perecível e involuntário milagre negativo que denominas vida, passam teus pesados dias de minutos enfadonhos e lacunas casuais - raros insights transcendentes - revestidos por teus anos de empenho vão e de martírio ilógico.
Tua sina: escrever, derramar o ácido metafísico de tuas entranhas sobre a folha branca; tua tinta: teu veneno; teu parágrafo: teu escudo; adjetivos, vírgulas, reticências: apêndices gramaticais de teu desapego maldito.
Teus passos desperdiçados por tua estrada insana perguntam ao silêncio de teus lábios secos o eterno porquê das coisas..., mas o sangue não derramado de teus ideais nulos revelam, em segredo, à tua alma de bicho virgem, a falta de nexo fúnebre de teus raciocínios vãos.
E é assim que tua alma, petrificada por conveniência, evidencia a pedagogia sinistra de tua postura atual a todos estes novos transeuntes da existência que, ludibriados pela vitalidade de seus próprios hormônios, ainda conseguem se apavorar ao ver-te no exercício de tua mais alta liberdade: escarrar na presença deles.
Ao passo em que tuas mãos perfeitas se ocupam de frivolidades, teu peito dorme em meio aos afazeres desta vida crua, onde teus braços se ocupam de tua subsistência e tua mente divaga por entre abismos sólidos. E, enquanto a lucidez te apunhala, teu coração se assemelha a uma goiaba molestada por larvas sádicas.
Neste perecível e involuntário milagre negativo que denominas vida, passam teus pesados dias de minutos enfadonhos e lacunas casuais - raros insights transcendentes - revestidos por teus anos de empenho vão e de martírio ilógico.
Tua sina: escrever, derramar o ácido metafísico de tuas entranhas sobre a folha branca; tua tinta: teu veneno; teu parágrafo: teu escudo; adjetivos, vírgulas, reticências: apêndices gramaticais de teu desapego maldito.
O ser humano no Mundo
É o seguinte: senti-me, pela enésima vez, uma ilha anônima e, acreditem, eu ainda não havia lido Heidegger. Acontece que essa ilha, digo, eu, não era habitada(o) por ninguém. Era uma ilha/coisa inútil; absurda. O mundo, real e/ou falso, acontecia às margens de minha existência que, aparentemente, não tinha nenhum propósito possível. Eu, com efeito, o via.
Encontrava-me, entretanto, a pouquíssimos, irrelevantes quase, metros da vida/margem. Isso de tal forma que, embora cônscio da curteza da distância, sentia-me, sobretudo, exilado. O meu horizonte racional, hospício e solidão, era o que mais dolorosamente saltava-me aos olhos: ele se me impunha como meta e refúgio do Ser. Meu ópio, absoluto, era um futuro nulo e indolor. O momento presente... sentia-o um câncer; e o futuro... uma cura, improvável e desbotada.
Bebia, praticamente, todos os dias; os anti-depressivos faziam-me um certo bem, relativo e quase confortador.
Após algum tempo compreendi o motivo de meu involuntário exílio espiritual: é que eu era demasiadamente apegado à reflexão... até perceber, entre horrorizado e extasiado, que uma espécie de vácuo indefinido, talvez conseqüência do uso indiscriminado de toda sorte de axiomas (essas pirotecnias conceituais que mascaram o vazio ontológico), rege, soberanamente, todos os empreendimentos teóricos. Saquei, epileticamente e com efeito, que a ironia vence e ridiculariza a dialética. O conceito de logos era agora, para mim, esse: megalomania compulsiva; dificuldade sistemática de ereção efetiva; ferramenta utilizada para refugiar-se da existência atual – a única que existe! A abstração intelectual, enquanto projeção pós-momento, tornara-se cancerígena... Era o começo de um contínuo, sistemático, grandioso delírio; o qual evidenciar-lhes-ei...
Percebi que o inferno era a ausência de libido, de ânimo, de respiração consistente, de calor e, pontualmente, de vida real. Pelo termo “vida real”, que acabo de criar, quero dizer: estágio orgânica e biologicamente natural, anterior ao advento da linguagem, em que o ser humano se encontra com o(s) sentido(s) da, e com a, existência.
Vi que a razão se trai, se perde nos labirintos da especulação, e quando atinge seu ápice é somente para beijar o Nada e abraçar o Vazio.
Puramente matéria e momento, pensava, o homem real encontrar-se-ia num estágio meta-ideal: toda racionalidade, ética e “progresso” fornecidos indelevelmente por seus ancestrais/antecessores ser-lhe-iam um degrau/fardo que foi deixado para trás.
Animal agora sadio, o homem real teria o direito, talvez mesmo a obrigação, de masturbar-se em público; e, numa gozada transcendente, afirmar-se, trágico, a si mesmo.
(A maior, a mais prejudicial falácia que a Filosofia criou, em suas ficções dinâmicas, é a que diz que a razão deve legislar a paixão, que o apetite deve ser subjugado pelo intelecto...)
Iena da Ilha do Dr. Moreau, vi, em meu delírio libertário, que a única Metafísica possível encontra-se em nosso ventre: é a estomacal!
Encontrava-me, entretanto, a pouquíssimos, irrelevantes quase, metros da vida/margem. Isso de tal forma que, embora cônscio da curteza da distância, sentia-me, sobretudo, exilado. O meu horizonte racional, hospício e solidão, era o que mais dolorosamente saltava-me aos olhos: ele se me impunha como meta e refúgio do Ser. Meu ópio, absoluto, era um futuro nulo e indolor. O momento presente... sentia-o um câncer; e o futuro... uma cura, improvável e desbotada.
Bebia, praticamente, todos os dias; os anti-depressivos faziam-me um certo bem, relativo e quase confortador.
Após algum tempo compreendi o motivo de meu involuntário exílio espiritual: é que eu era demasiadamente apegado à reflexão... até perceber, entre horrorizado e extasiado, que uma espécie de vácuo indefinido, talvez conseqüência do uso indiscriminado de toda sorte de axiomas (essas pirotecnias conceituais que mascaram o vazio ontológico), rege, soberanamente, todos os empreendimentos teóricos. Saquei, epileticamente e com efeito, que a ironia vence e ridiculariza a dialética. O conceito de logos era agora, para mim, esse: megalomania compulsiva; dificuldade sistemática de ereção efetiva; ferramenta utilizada para refugiar-se da existência atual – a única que existe! A abstração intelectual, enquanto projeção pós-momento, tornara-se cancerígena... Era o começo de um contínuo, sistemático, grandioso delírio; o qual evidenciar-lhes-ei...
Percebi que o inferno era a ausência de libido, de ânimo, de respiração consistente, de calor e, pontualmente, de vida real. Pelo termo “vida real”, que acabo de criar, quero dizer: estágio orgânica e biologicamente natural, anterior ao advento da linguagem, em que o ser humano se encontra com o(s) sentido(s) da, e com a, existência.
Vi que a razão se trai, se perde nos labirintos da especulação, e quando atinge seu ápice é somente para beijar o Nada e abraçar o Vazio.
Puramente matéria e momento, pensava, o homem real encontrar-se-ia num estágio meta-ideal: toda racionalidade, ética e “progresso” fornecidos indelevelmente por seus ancestrais/antecessores ser-lhe-iam um degrau/fardo que foi deixado para trás.
Animal agora sadio, o homem real teria o direito, talvez mesmo a obrigação, de masturbar-se em público; e, numa gozada transcendente, afirmar-se, trágico, a si mesmo.
(A maior, a mais prejudicial falácia que a Filosofia criou, em suas ficções dinâmicas, é a que diz que a razão deve legislar a paixão, que o apetite deve ser subjugado pelo intelecto...)
Iena da Ilha do Dr. Moreau, vi, em meu delírio libertário, que a única Metafísica possível encontra-se em nosso ventre: é a estomacal!
Ética e Finitude
Sentados, como de costume, na mesa do bar os dois amigos, X e Y, conversam:
X- Sabe, estes dias andei pensando sobre o fenômeno morte e cheguei a algumas conclusões que gostaria de discutir com você..., o que pensas sobre a morte?
Y- Penso que seja um estado de não existência, um mergulho no nada. Mas, existem pessoas que pensam diferente: uns acreditam que renascerão posteriormente e viverão outra vida em outro lugar e circunstâncias, outros acreditam que vão para o céu e que suas almas são imortais. E você, o que pensa sobre este assunto?- que aliás diz respeito ao destino comum de todos os viventes...
X- Confesso a você, prezado camarada, não ter formado grande opinião a este respeito, mas, concordo contigo ao averiguares que a morte é, indubitavelmente, o fim único de tudo o que vive. Por mais que isto seja óbvio parece que é um assunto não muito discutido pelas pessoas, não achas?
Y- Realmente, parece que as pessoas não falam muito a este respeito.
X- Uma coisa é evidente: ninguém sabe o que acontece depois da morte; as pessoas podem até ter fé em uma vida melhor depois dela, mas ninguém pode provar que exista outra vida. Na verdade acho que as pessoas têm medo da morte, de saber que não são eternas, e criam estas ficções pra servirem-lhes de consolo. Também penso, diga-me se eu estiver enganado, que as pessoas parecem viver alienadas da morte, seu último e certo fim..., não achas?
Y - Pareces teres razão quando dizes que as pessoas vivem sem se lembrarem de que, mais cedo ou mais tarde, morrerão. E, penso eu, este fenômeno ocorre devido ao fato de as pessoas estarem constantemente concentradas em suas atividades: pergunte a um trabalhador, com exceção de um coveiro ou de alguém que trabalhe em uma funerária, o que ele pensa da morte, evidentemente ele se surpreenderá com a pergunta e se atrapalhará com a resposta. Parece-me que salvo raras exceções, só as crianças questionam assunto tão delicado.
X- Muitíssima boa resposta. Concordo e digo mais; se é que me permites.
Y- Por favor, prossiga.
X- Uma vez constatado o fato de que as crianças se preocupam efetivamente com este assunto e que, por isso mesmo, questionam os adultos sobre o “mistério” da morte, o que calculas ser o mais prudente dizer a elas? Que vamos viver depois, ou que morremos e tudo acaba?
Y- Devemos, filósofos que somos, dizer-lhes a verdade!
X- Evidentemente... mas, me diga por favor, qual é a verdade?
Y- Ora, caro amigo, a verdade é a seguinte: nós não sabemos a verdade!
X- Perfeito. E uma vez sabido que tal informação não está ao nosso alcance, as crianças podem crescer indiferentes a este assunto, como os trabalhadores a pouco mencionados; ou, se for o caso, apegarem-se a algum tipo de consolo, não científico, mas metafísico. Mas, analisemos também a seguinte possibilidade: e se lhes mentíssemos e as disséssemos que sabemos sim, pois Deus nos contou que viveremos no paraíso se formos bons e que vamos para o inferno se formos maus, o que achas que aconteceria?
Y- Penso que estas crianças ficariam, uma vez iludidas por estas alegorias, muito orgulhosas de serem imortais e que, temerosas do castigo e interessadas pela recompensa, levariam uma vida bastante regrada. É que isto implica, necessariamente, no fato de elas estarem sendo vigiadas, em tempo integral, por um ser onisciente, onipotente e onipresente que, convencionalmente, denominamos Deus. Enfim, creio que isto faria com que elas pensassem muito antes de agir desta ou daquela maneira.
X- De acordo. Mas, analisemos também o que aconteceria a estas crianças se lhes mentíssemos o contrário. Como achas que se comportariam se lhes disséssemos que são mortais, ou seja, que só têm esta vida e que Deus não as vigia e, por isso mesmo, não podem ser punidas e nem recompensadas?
Y- Neste caso, parece-me que se tais crianças crescessem sem ter a esperança de uma outra vida, se preocupariam unicamente com esta vida e justamente por não haver uma outra seria necessariamente nesta que teriam que realizar seus projetos, seus sonhos e suas conquistas. Obviamente isto feriria o não pequeno orgulho e a soberba daqueles que se pretendem imortais...
X- Concordando contigo em gênero, número e grau, e relembrando o que constatamos no início de nossa conversa sobre as pessoas que, diferentemente das crianças, parecem estar alienadas quanto ao seu indubitável destino, com exceção, é claro, dos coveiros, das pessoas que trabalham em funerárias e, em menor medida, das que pagam seguro de vida, creio, com efeito, que existe um fenômeno que faz a morte parecer distante às pessoas e não nos permite pensar que ela nos espreita, apetitosamente, em cada esquina. Sabes de que falo?
Y- Pela expressão do teu rosto já imagino onde queres chegar... por favor prossiga.
X- Será, pois, um prazer. Devemos observar que existe um fenômeno comum a muitas, senão a todas as culturas: o sepulcro dos mortos. E é especificamente o fato de enterrarmos os mortos que nos permite esquecer da morte, esquecer da fragilidade de nossas vidas. Reconheçamos, caro amigo, que se os cadáveres ao invés de enterrados, cremados ou mumificados fossem expostos na rua e na praça pública teríamos, por sua imagem ou odor, que encarar neles a nossa própria morte; e a morte em si mesma. Então, como para as crianças, a morte seria mais constante em nossos pensamentos, concordas?
Y- Estou chocado; mas falas a verdade. Apenas não compreendo em que medida possa nos ser de alguma utilidade lembrarmo-nos assiduamente da morte.
X- Boa observação, camarada. Explicá-lo-ei, se é que me permites a mesóclise, tudo o que penso a este respeito... Saber da nossa própria morte é lembrar, é refletir sobre a vida. E como observamos, salvo as crianças e os coveiros, as pessoas comuns não sustentam essa importantíssima reflexão sobre si próprias. Alienadas de sua própria morte, estão também alienadas de sua própria vida! Nessa medida, os cemitérios não passam de meros agentes inibidores de nossas mais profundas e significativas reflexões existenciais: eles permitem que os problemas de mais alta periculosidade filosófica, juntamente com os cadáveres, sejam mortos e enterrados.
Y- Impressionante!
X- Penso que, num sentido metafórico, devemos adquirir uma postura parecida com a dos vermes que, famintos, devoram nossa carne uma vez que estejamos mortos. Assim, o homem que ouve a música constante de sua decomposição orgânica deve assumir um papel análogo ao papel dos vermes, com uma única diferença: devorar-se em vida. Verme consciente das delícias da carne, o homem, enquanto provido de vida, deve saborear-se ao máximo, chafurdar as delícias do corpo, corroendo-se prazerosamente até o momento de sua morte. Aliás, a quantidade de prazer que podemos desfrutar é tão indefinida quanto a quantidade de dias que nos separam do nosso fim... Uma vez morto, o homem deve dar aos vermes apenas uma carcaça excessivamente usada e efetivamente inválida.
Y- Deve ser, então, por isso que temos notícias de cadáveres não mumificados contando com centenas de anos e em pleno estado de conservação! Fico imaginando os vermes se queixando sobre o cadáver de uma pessoa que viveu intensamente: “não existe mais nada de bom neste corpo, a pessoa que o ocupava consumiu todo o seu néctar”; assim, decepcionados, os vermes viram as costas e deixam o corpo intacto.
X- Há, há, há! Essa foi ótima!
Y- Evidentemente que se trata de uma brincadeira, é que, apesar da seriedade do assunto, acho fundamental mantermos o bom humor.
X- Muito bem lembrado, e para celebrar o nosso refinadíssimo, e talvez negro, humor, peçamos mais uma garrafa de vinho que quero propor um brinde.
Y- Agora mesmo...
O garçom enche-lhes os copos:
X- Um brinde às crianças, aos vermes e aos coveiros!
Tim-tin!...
X- Sabe, estes dias andei pensando sobre o fenômeno morte e cheguei a algumas conclusões que gostaria de discutir com você..., o que pensas sobre a morte?
Y- Penso que seja um estado de não existência, um mergulho no nada. Mas, existem pessoas que pensam diferente: uns acreditam que renascerão posteriormente e viverão outra vida em outro lugar e circunstâncias, outros acreditam que vão para o céu e que suas almas são imortais. E você, o que pensa sobre este assunto?- que aliás diz respeito ao destino comum de todos os viventes...
X- Confesso a você, prezado camarada, não ter formado grande opinião a este respeito, mas, concordo contigo ao averiguares que a morte é, indubitavelmente, o fim único de tudo o que vive. Por mais que isto seja óbvio parece que é um assunto não muito discutido pelas pessoas, não achas?
Y- Realmente, parece que as pessoas não falam muito a este respeito.
X- Uma coisa é evidente: ninguém sabe o que acontece depois da morte; as pessoas podem até ter fé em uma vida melhor depois dela, mas ninguém pode provar que exista outra vida. Na verdade acho que as pessoas têm medo da morte, de saber que não são eternas, e criam estas ficções pra servirem-lhes de consolo. Também penso, diga-me se eu estiver enganado, que as pessoas parecem viver alienadas da morte, seu último e certo fim..., não achas?
Y - Pareces teres razão quando dizes que as pessoas vivem sem se lembrarem de que, mais cedo ou mais tarde, morrerão. E, penso eu, este fenômeno ocorre devido ao fato de as pessoas estarem constantemente concentradas em suas atividades: pergunte a um trabalhador, com exceção de um coveiro ou de alguém que trabalhe em uma funerária, o que ele pensa da morte, evidentemente ele se surpreenderá com a pergunta e se atrapalhará com a resposta. Parece-me que salvo raras exceções, só as crianças questionam assunto tão delicado.
X- Muitíssima boa resposta. Concordo e digo mais; se é que me permites.
Y- Por favor, prossiga.
X- Uma vez constatado o fato de que as crianças se preocupam efetivamente com este assunto e que, por isso mesmo, questionam os adultos sobre o “mistério” da morte, o que calculas ser o mais prudente dizer a elas? Que vamos viver depois, ou que morremos e tudo acaba?
Y- Devemos, filósofos que somos, dizer-lhes a verdade!
X- Evidentemente... mas, me diga por favor, qual é a verdade?
Y- Ora, caro amigo, a verdade é a seguinte: nós não sabemos a verdade!
X- Perfeito. E uma vez sabido que tal informação não está ao nosso alcance, as crianças podem crescer indiferentes a este assunto, como os trabalhadores a pouco mencionados; ou, se for o caso, apegarem-se a algum tipo de consolo, não científico, mas metafísico. Mas, analisemos também a seguinte possibilidade: e se lhes mentíssemos e as disséssemos que sabemos sim, pois Deus nos contou que viveremos no paraíso se formos bons e que vamos para o inferno se formos maus, o que achas que aconteceria?
Y- Penso que estas crianças ficariam, uma vez iludidas por estas alegorias, muito orgulhosas de serem imortais e que, temerosas do castigo e interessadas pela recompensa, levariam uma vida bastante regrada. É que isto implica, necessariamente, no fato de elas estarem sendo vigiadas, em tempo integral, por um ser onisciente, onipotente e onipresente que, convencionalmente, denominamos Deus. Enfim, creio que isto faria com que elas pensassem muito antes de agir desta ou daquela maneira.
X- De acordo. Mas, analisemos também o que aconteceria a estas crianças se lhes mentíssemos o contrário. Como achas que se comportariam se lhes disséssemos que são mortais, ou seja, que só têm esta vida e que Deus não as vigia e, por isso mesmo, não podem ser punidas e nem recompensadas?
Y- Neste caso, parece-me que se tais crianças crescessem sem ter a esperança de uma outra vida, se preocupariam unicamente com esta vida e justamente por não haver uma outra seria necessariamente nesta que teriam que realizar seus projetos, seus sonhos e suas conquistas. Obviamente isto feriria o não pequeno orgulho e a soberba daqueles que se pretendem imortais...
X- Concordando contigo em gênero, número e grau, e relembrando o que constatamos no início de nossa conversa sobre as pessoas que, diferentemente das crianças, parecem estar alienadas quanto ao seu indubitável destino, com exceção, é claro, dos coveiros, das pessoas que trabalham em funerárias e, em menor medida, das que pagam seguro de vida, creio, com efeito, que existe um fenômeno que faz a morte parecer distante às pessoas e não nos permite pensar que ela nos espreita, apetitosamente, em cada esquina. Sabes de que falo?
Y- Pela expressão do teu rosto já imagino onde queres chegar... por favor prossiga.
X- Será, pois, um prazer. Devemos observar que existe um fenômeno comum a muitas, senão a todas as culturas: o sepulcro dos mortos. E é especificamente o fato de enterrarmos os mortos que nos permite esquecer da morte, esquecer da fragilidade de nossas vidas. Reconheçamos, caro amigo, que se os cadáveres ao invés de enterrados, cremados ou mumificados fossem expostos na rua e na praça pública teríamos, por sua imagem ou odor, que encarar neles a nossa própria morte; e a morte em si mesma. Então, como para as crianças, a morte seria mais constante em nossos pensamentos, concordas?
Y- Estou chocado; mas falas a verdade. Apenas não compreendo em que medida possa nos ser de alguma utilidade lembrarmo-nos assiduamente da morte.
X- Boa observação, camarada. Explicá-lo-ei, se é que me permites a mesóclise, tudo o que penso a este respeito... Saber da nossa própria morte é lembrar, é refletir sobre a vida. E como observamos, salvo as crianças e os coveiros, as pessoas comuns não sustentam essa importantíssima reflexão sobre si próprias. Alienadas de sua própria morte, estão também alienadas de sua própria vida! Nessa medida, os cemitérios não passam de meros agentes inibidores de nossas mais profundas e significativas reflexões existenciais: eles permitem que os problemas de mais alta periculosidade filosófica, juntamente com os cadáveres, sejam mortos e enterrados.
Y- Impressionante!
X- Penso que, num sentido metafórico, devemos adquirir uma postura parecida com a dos vermes que, famintos, devoram nossa carne uma vez que estejamos mortos. Assim, o homem que ouve a música constante de sua decomposição orgânica deve assumir um papel análogo ao papel dos vermes, com uma única diferença: devorar-se em vida. Verme consciente das delícias da carne, o homem, enquanto provido de vida, deve saborear-se ao máximo, chafurdar as delícias do corpo, corroendo-se prazerosamente até o momento de sua morte. Aliás, a quantidade de prazer que podemos desfrutar é tão indefinida quanto a quantidade de dias que nos separam do nosso fim... Uma vez morto, o homem deve dar aos vermes apenas uma carcaça excessivamente usada e efetivamente inválida.
Y- Deve ser, então, por isso que temos notícias de cadáveres não mumificados contando com centenas de anos e em pleno estado de conservação! Fico imaginando os vermes se queixando sobre o cadáver de uma pessoa que viveu intensamente: “não existe mais nada de bom neste corpo, a pessoa que o ocupava consumiu todo o seu néctar”; assim, decepcionados, os vermes viram as costas e deixam o corpo intacto.
X- Há, há, há! Essa foi ótima!
Y- Evidentemente que se trata de uma brincadeira, é que, apesar da seriedade do assunto, acho fundamental mantermos o bom humor.
X- Muito bem lembrado, e para celebrar o nosso refinadíssimo, e talvez negro, humor, peçamos mais uma garrafa de vinho que quero propor um brinde.
Y- Agora mesmo...
O garçom enche-lhes os copos:
X- Um brinde às crianças, aos vermes e aos coveiros!
Tim-tin!...
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