sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Diário de bordo: Floripa (Novembro de 2010)

Na ida, já no busão, caí ao lado de uma linda ninfa: Priscila, 20 anos, estudante de direito, numa facul pública de Ponta Grossa. Altas ideias, prazeres, olhares, pesares, audácias e, por fim, a covardia da não-intimação. Cantei-lhe Djavan enquanto ela fingia dormir: “teus sinais me confundem da cabeça aos pés, mesmo assim eu te devoro...” Ela entendeu tudo em silêncio! Aportando na rodoviária o pai dela veio apanhá-la; o resultado foi que me deram uma carona de uns 95% do trajeto: não me deixaram no Hostel porque eu não sabia exatamente onde era. Apanhei um táxi e fui pra lá. Na recepção houve confusão, ninguém sabia em que quarto me colocar. Levaram-me a um que rejeitei (não era o que eu reservara), depois abriram outro para me mostrar: nesse flagramos um jovem casal colombiano transando. Por fim, após muito sobe e desce me colocaram no local certo: um quarto com seis beliches.

Na manhã seguinte, lá estavam meus vizinhos de cama, dez belas muchachas – duas alemãs, duas australianas, duas inglesas, quatro curitibanas - e um uruguaio. Não era um time: era um furacão heterogêneo! Eu estava em casa.

Treinei muito meu inglês, por vezes de modo habilidoso, por vezes de modo tacanho. Mas fazia valer uma graciosidade e bom-humor meus, minha graça! O uruguaio, de inglês impecável, frequentemente ficava pra trás, mesmo lubrificado pelas caipirinhas que o Albergue oferecia de cortesia.

Certa manhã, vendo-me sozinho com Erica, uma australiana delícia, disse-lhe: Escuse-me, do you like a man? – Ela disse: Watch!? – E eu: Man, boy, boyfriends... – Why? – Because I would like to kiss you! - Ah, hehheeh, thank you, but I have a boyfriend! – Ok, and is he in Australia now? – Yes. – disse ela! Ao que eu, sorrindo e dando o pulinho da sorte qual o do ganhador da loteria nos comerciais, respondi: Uau! I’m a lucky man! E rimos juntos pra valer. Apaziguados, ela, na simpatia, disse: It’s fine, but thank you. E eu virando as costas convicto de ter tido um comportamento magistral e ter vencido-me, disse-lhe simplesmente: You are welcome! – e saí andando.

As alemãs eram mais belas. Com elas conversei mais, mas não houve momentos de ímpeto como aquele que rolou com a Erica; apenas insinuações mais ou menos sutis. Foram elas que conheci primeiro. Foi assim: após zanzar pelos bares da Lagoa da Conceição, lá estava eu, de pijamas deitado na cama em minha primeira noite no Albergue. Vi gente chegando alta madrugada. Pelos passos leves entendi que eram mulheres. Já abri os olhos. Eram elas. Sorrimo-nos. Uma veio até mim e disse, em inglês, que aquela cama era dela. Ao que respondi que o Nick, da recepção, me assegurou que a cama estava vaga. Nesse momento, falávamos baixinho, afinal havia nove pessoas dormindo ao nosso entorno. Mas a situação era cômica, ríamos bastante. Foi quando eu cavalheirescamente ofereci a cama para ela – claro que pensei na vulgaridade, às vezes eficaz, de oferecer para dormirmos juntinhos ali. Mas hesitei. Foi quando lembrei de uma cama vaga no quarto e apontei-lhe o caminho. Ela agradeceu, foi ao banheiro tirar a maquilagem, voltou de pijama e dormiu.

Noventa por cento do público do Albergue era gringo. Também, com os pais ganhando em euro fica fácil conhecer toda a América do Sul, tal como eles estavam a fazer. E eu que moro aqui há trinta anos, só conheço uma merrequinha de lugares. Ô tristeza! Vamos ver se com Dilma e mais anos de PT as coisas melhoram pra gente do povo como eu e a maior parte do brasileiros. No mais, devo dizer que eu tinha outra idéia dos europeus e dos povos historicamente situados como os “civilizados”, os bacanões. Aconteceu que uma noite eu jantei no Albergue. Pedi licença e sentei à mesa com as alemãs do quarto. Dentre em pouco, chegaram dois rapazes ingleses, sentaram-se impetuosos e bruscos à mesa, interrompendo minha prosa e dirigindo-se às garotas sem me dar a mínima, como se eu não existisse! É claro que aquilo era um abuso! Me irritei, fiquei puto! Se estivéssemos no século XIV tiraria as luvas e bater-lhes-ia no rosto, intimando-os para um duelo! Mas, estando no XXI, me segurei. E valeu a pena, pois a vingança, doce e restauradora veio a cavalo! Um segundo depois chega à mesa uma outra garota estrangeira. Ela tem o mesmo procedimento: me ignora por completo, dirigindo-se apenas aos seus conterrâneos do velho mundo, em inglês. Eu sorrio astuto: estava com um Royal Street Flash! Disse-lhe num tom extremamente provocativo, e super bem-humorado, rindo, rindo, rindo e ao mesmo tempo evidenciando a dignidade da minha revolta: Helo, I`m a invisible man! Todos riram! Eu mostrei que era bacanão, que todos eram manés e que eu sabia cobrar-lhes o que me era devido, como o gentleman que eles supostamente deveriam ser! Foi quando o que se mostrou mais humano entre os rapazes ingleses me disse amistosamente: “Hi, man! Where are you from?” – “I`m brasilian, and you?” – “I’m england!” – E eu, triunfalmente, finalizei, muitíssimo sorridente: “Ah, ok, you are welcome!” – O itáilco no “you” significa o que todos naquela mesa entenderam perfeitamente: que ele, apenas ele, era bem-vindo!

E lá estava Floripa: um refúgio? Um caos de gente? As duas coisas! Refúgio pra quem sabe ser, e caos de gente pra que não o sabe. O Albergue ficava em bom lugar: entre a Lagoa e a Praia Mole. Aos dois ia-se a pé. Tinha vezes de eu descer o morro, ao topo do qual ficava o Hostel, como um modelo na passarela – mesmo sem roupa da moda, mas com o charme e glamour que deve ter o modelo. Era falso, claro. Não sou modelo, mas entre eu e um, excetuando-se a beleza externa, o caminhar fizera-se indistinguível. Eu sou ator! Graaaaande qualidade e astúcia sê-lo! O segredo é se soltar, soltar a franga. Eu soltei muito a franga em Floripa!

Na praia mole, aluguei cadeira e guarda sol. Ao lado, instalaram-se três casais. Era impossível não mesclar-se afetivamente a eles. Estávamos geograficamente muito próximos. E o Fábio, esse suposto “eu” que devo ser e que é sustentado por esse nome e por uma história, estava de férias. Quando contavam piada, eu ria. Quando se aborreciam, me contagiavam. Rolou uma interação louca entre mim e uma das moças, algo transcendente, pura compreensão e mistério embutidos no pacote “magia”. Não demorou nada para que os rapazes se dessem conta daquilo. Aí o bicho pegou. Claro que ninguém saiu na porrada, mas os caras começaram a se crescer, a tocar terror, a usar meios desleais para me fazer abandonar o guarda sol, a cadeira e – quem sabe? – um amor predestinado. Enfrentei. O ator deveio He-man! A moça colocava panos quentes, muito habilidosamente, o tempo todo. Advogava a meu favor. Os rapazes hora pareciam entender o meu direito a estar ali, hora pareciam duvidar desse direito. Juntos, fizeram um complô para analisar meus trejeitos, ver o que se passava comigo. Não eram más pessoas, com certeza. Apenas não sabiam da verdade que eu mesmo aprendi naquele dia: que podia disputar a mulher de qualquer um, porque se eu ganhasse a disputa, aquela mulher não era desse qualquer um – e ninguém pode cobrar outrem daquilo que não é seu! Quando compreendi isso, olhei a todos nos olhos, repousado na verdade. Foi o meu green card de permanência.

Por fim, aquela aventura e encontro espiritual com a moça não deu em nada – contra meu coração, evitei-a, fugi covardemente de suas investidas querendo me convencer de que era o melhor. Afinal, como eu poderia me aproximar dela? Não tinha jeito! Eu não estava assim tão disposto a ponto de chegar na frente de todos da roda e me apresentar como possível amigo. Minha astúcia tem limites! Então, aquele saboroso encontro acabou por gerar o gosto amargo do desencontro. E valeu a pena! Tenho cá comigo que são essas ruas estreitas, que inventamos para seguir em frente, sem garantias, que nos conduzem para o lugar onde estamos. E quem disse que não era esse o lugar que deveríamos estar? E quem disse que deveríamos estar em algum lugar? O barato é o trajeto!

Foi também na Praia Mole que tive uma intuição filosófica peculiarmente sutil. Não sei, posso estar errado, não entendo de física quântica. Mas me parece que o mar interage com a gente. Ele nos absorve, responde às nossas projeções. Tipo, se entramos leves, despreocupados, as ondas vêm leves e delicadas. Se entramos soturnos e carregados, somos tragados pelo repuxo e ondas nervosas se abatem sobre nossos corpos. - Não quero fazer ciência disso, mas registrar essa impressão em nota literária para quem sabe daqui a duzentos anos alguém confirmar o fato e ver que eu já sabia – se eu estiver errado, tanto melhor.

Também peguei um taxista drogadérrimo; um perigo! Eu lhe dei uma pequena brecha, para ver do que ele era capaz e ele tomou uns noventa por hora na contramão, gritando, em plena Lagoa da Conceição. Mostrou-se razoável, contudo, quando implorei que parasse. Um outro, gordo, pediu quinze mangos pra me levar pro Hostel em certa noite. Eu entrei e disse, senhor de si e da situação: “Não! Liga o marcador!” O resultado é que, à porta do Albergue, a corrida deu sete e quarenta.

Certa noite, caí, solito, pra dentro do Jonh Bull. Levei um lero maneiro com uma figura que se erguia vendendo ingresso antecipado, um cambista. Trinta reais, Tribo de Jah. O lugar era bacana, paquerei muito. Mas com meus respeitos à banda que é composta por gente que adoro, gente simples, devo dizer que as letras são deprimentes, toscas e a musicalidade medíocre. Dói a alma ver o povão se extasiar diante de tamanha inocuidade. Claro que dancei, e muito. Mas significativa parte do tempo foi debochando de mim, por estar ali, e dos demais, por não saberem que eram frívolos. Em momentos felizes, esquecia meu lado crítico e me entregava a meus mais vitais impulsos: àqueles capazes me fazer requebrar diante de qualquer melodia dançável. Aí mandava ver e era libertação também, mas de outro nível.

Na última noite, o Albergue agenciou um ônibus para levar o pessoal ao show de um sujeito que eu, por anacronismo, nunca ouvi falar: Black Eayd Peas. Entramos no ônibus. Ao meu lado sentou-se o alemão Alex: magrelo, altérrimo, vinte e nove anos, classe média baixa. Falamos muito, olho no olho em inglês. Eu fui palhaço na prosa. Perguntei-lhe se ficaria muitos dias no Brasil, quais eram seus planos turísticos na América do Sul. Cavalheirescamente, ele me explicou que tinha dúvidas quanto aos melhores destinos e me perguntou que lugares eu recomendava. Foi minha chance de zuar. Comecei falando que eu era uma pobre alma de um país subdesenvolvido e que, por vezes, não tinha condições de pagar um banheiro de rodoviária. Dizia, fingindo chorar, que minha mãe era mãe solteira, professora do interior e que fui criado sem pai. Disse que eu não conhecia nada, que viajei muito pouco na vida e que se estava ali em Floripa naquele momento era porque comecei a trabalhar e ganhar meu suado dinheirinho. Era uma meia verdade que se tornava cômica pela maneira divertida como eu contava, fazendo minha vida parecer o que talvez realmente fosse: uma piada. Finalmente, para conscientizar o alemão de coisas interessantes acerca do Brasil, disse em tom tragicômico que o transporte aéreo só recentemente se popularizou no país e que eu mesmo viajei de avião pela primeira vez com vinte e cinco anos de idade. Eu falava como quem ria e chorava ao mesmo tempo. O Alex quase rachou de rir quando eu caricaturei a minha situação, dizendo que quando o avião decolou na primeira vez em que voei eu quase caguei nas calças. Era uma mentira dadivosa, pois levava meu novo amigo ao delírio. Mais tarde, neos-zelandezes vieram me parabenizar: ouviram toda a conversa e estavam convencidos de que eu era um grande artista.

Descemos todos do ônibus e ficamos esperando não sei quem chegar com as entradas. Foi quando intimei as duas alemães a me dizerem uma frase que julgam de grande beleza em seu idioma. Elas vacilaram. Pensaram, se embaraçaram. Por fim, disseram que não sabiam. Foi quando eu, pensando estar de posse de uma terrível compreensão, afirmei temerariamente: “Não há mais beleza no mundo!” Todos riram, e eu, ao contrário, estava triste com a possível descoberta. Foi quando elas rebateram: mas e você, nos fale uma frase bonita de sua língua. Foi então que eu lembrei, na minha grande tristeza, que estar triste por não ver real beleza, era uma beleza. E recitei Vinícius de Moraes: “Mas pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza, é preciso um bocado de tristeza, senão não se faz um samba não”. Então era quilo? A beleza que eu buscava, aquela que não rejeita a estética, mas que a transcende, estava reservada aos economicamente miseráveis, aos desguarnecidos? O sambista da favela a possuía; São Francisco de Assis também... Essa reflexão ecoa até hoje em mim, devido a sua grande plausibilidade. Mas, voltemos para o tête-à-tête da viagem...

Dentro da grande boate, o comum: gente sedenta por diversão, gente jovem, gente bacana, que anda na moda e se entrega às músicas efêmeras do momento. Eu também sabia estar lá. Não me firmei com o pessoal do busão; fiquei solto. Ia daqui pra lá, e vice-versa, livre, livre, livre! Seria essa maçã da solidão capaz de justificar e erigir a vida de solteirão em maciça alegria? Bom, o fato é que eu tinha livre acesso a todos os lugares, me sentia à vontade para interagir com todas as pessoas que elegesse. Bem aliado a mim mesmo, sem ninguém que me conheça para botar reparo – quem sabe dizer: “vejam, lá está o Professor Fábio!” – e, portanto, livre do peso do meu passado, livre das exigências sociais da vida ordinária, eu podia alucinar total, se quisesse. E de certo modo o fiz. Por exemplo, dancei por músicas a fio sem abrir os olhos, com o corpo em transe místico – diria. E quando abri os olhos as pessoas haviam feito uma roda em volta de mim. Eu havia criado um espaço no local cheio, um espaço meu. Uma intimidade no caos. Ao abrir os olhos depois de mostrar que eu sou pra valer, via rostos. O que eles me diziam? Uns, nada. Outros aprovavam. Outros invejavam. Nenhum me atingia!

Bebi apenas água mineral e água de coco. Às quatro da manhã, eu, pleno maestro de mim, deslizava entre corpos abatidos, bêbados, entediados, desiludidos e frustrados. Era glória, aquilo. Elegante, chegava em garotas sem me rebaixar, como se o chegar – independente do sim ou do não – fosse um jogo que eu já havia vencido de antemão. Quem quisesse confirmar tal feito, bastava fixar o olhar no meu. Lá estava tudo: límpido, feito, sólido. Não sei porque, eu sabia exatamente o que fazer, sempre.

No ônibus, na volta, meu amigo Alex empacotou. Me enturmei com o pessoal do Brasil, que eram os únicos animados. Rolou muita onda, muita risada, muito barato. Tudo era-me música. Por quê? É que, finalmente, após uns três dias eu desenvolvo um papo com alguém em português. Foi restaurador e por isso me pus a pensar na situação dos imigrantes. Deve ser trash!

Também ocorreu de a guia, brasileira, me traduzir. Ou seja, decifrar aquele pequeno ser que tinha diante dela. Como eu flutuava numa afinada beleza interior, que era apenas abençoar a vida e o Universo, possuía um sorriso indefectível. Ele amarrou-a. E ela também entendeu que eu entendia. Estávamos entendidos. Mas ela já estava agasalhada a outro. Um raposo. Ele rapidamente percebeu que a moça estava sendo atraída por um estranho ímã. Ele olhou pra mim e viu o ímã. Eu não o escondi e ele também se atraiu. Não sexualmente, quero acreditar, mas apenas amistosa e fraternalmente. Por fim, o ônibus parou antes do Albergue, às seis e meia da manhã, e os casais desceram. Banhar-se-iam no mar.

Quando aportamos no Hostel eu fiquei em dúvida: aguardar os quarenta e cinco minutos para servirem o café da manhã, ou ir empacotar? Após hesitar um pouco, fiquei com a segunda opção. Bacana o fato de eu já haver saudado o sol que nascera, antes de deitar. Acordei às onze. Desliguei o despertador e só surgi à uma. Fiz o check-out e o camarada brincou que eu devia pagar mais caro, já que fiquei num arem. Eu ri e paguei-lhe apenas o devido. Deixei as malas na recepção e parti ao encontro de minha última tarde na ilha. Já sabia de meu destino: uma cachoeira pela qual se chega de barco. O passeio foi legal. Durante o percurso ficava delirando com a possibilidade de vir a morar nas casas beira-Lago: casas ao pé do morro, de bom gosto, morro cheio de mata e natureza intocada, o barco parado à frente na praia particular.

Quando chegou na estação da cachoeira, desci. Após uma pequena caminhada morro acima, cheguei numa cachoeira minguada que mais parecia uma bica d’água. Não era o que eu esperava. Pra piorar, tinha uma galera da pesada por perto. Soube me sair. Tentei, então, me banhar sob a quedinha d’água, mas era improvável que alguém pudesse fazê-lo: havia grande limosidade nas pedras que impediam qualquer ser de se sustentar sobre elas. Retornei. Gratuitamente, desci cantando e sorrindo, sem parar ou desafinar mesmo e principalmente quando as pessoas passavam ao meu lado. Todos me sorriam. Morro abaixo, na estação do barco, havia lanchonetes. Elegi uma ao léu; pedi suco de laranja natural sem gelo e sem açúcar. A moça trouxe feliz. Bebi feliz e lhe dei feliz uma gorjeta do mesmo valor do suco. Rimo-nos e parti.

A fila do barco estava grande. Mal cheguei, chegaram atrás de mim dois rapazes. Doidos de brown. Riam, se refestelavam. Classe média que se acha malandra. Eram cheios de artimanha, tiradas, audácias, imprudências e despudores. Eu respeitava o pragmatismo deles, mas queria apenas estar ali em paz – sem me envolver na “onda” dos caras. Tentei dar isso a entender de modo sutil. Não rolou. Daí tentei fazer amizade e acabei até indo no bar comprar água. Mas os caras estavam definitivamente em outra. A solução, para conseguir o distanciamento que eu queria por direito, foi torturar-lhes. Conduzi-os friamente a alguns abismos. Fiz eles perderem a fé ingênua neles mesmos. E, em todo caso, fiz-lhes um grande favor: ensinei-lhes aquilo que já dizia o Cidade Negra, que: “malandragem é saber viver, se antenar ter a sagacidade...” – e com a banda em pauta ainda lhes perguntei: “que malandro é esse que apanha pra viver...?” Sinceramente, ao sorrir-lhes generoso e consolar-lhes com meu calor humano após tê-los derrotado, não duvidaria que chegando em casa fossem procurar fazer vestibular - e/ou largassem o skate!

Durante o retorno do barco sentei-me à porta do mesmo para melhor apreciar a bela vista. De repente um sujeito me bate às costas e pergunta hostilmente se era eu que ia puxar o barco quando o mesmo chegasse à estação. O fato de eu estar de mochila, óculos escuro, bermuda e chinelo e, acima de tudo, deslumbrado com a paisagem evidenciava em absoluto que eu era um turista. O cara, ciente disso, queria confusão? Respondi-lhe apenas “não!”. E ele emendou: “Então, cai fora daí!” – Respirei fundo e disse-lhe, extremamente debochador, mas irritado: “Quando estivermos chegando eu saio! Pode ser?!” Ele, sem saída e ferido, respondeu “Sim!” E dali a poucos segundos disse a alguém que eu estava me achando. Aquele sujeito me tirou do sério. Como podia ser tão vil, encardido e grosseiro? Que abuso! Era um senhor de barba; devia-lhe respeito por ser mais velho? Como agir? Devia tolerá-lo? Esgana-lo? Me perdi, fiquei fora de mim sem saber o que fazer. Tentando ser elegante, saí do lugar em que estava pedindo-lhe “com licença” e agradecendo por me dar passagem. Mas ele riu enquanto eu passava e eu disse que pedi licença porque achava a educação fundamental – e, nas entrelinhas, quis dar-lhe o bom exemplo, mostrar-lhe que a ação mais conveniente e apropriada é o caminho da cordialidade. Mas como eu estava muito nervoso, não agi senhor de mim, fraquejei. Ele, triunfante, caçoou de meus bons modos, provando que a força bruta, por vezes, é mais potente, eficaz, pragmática e melhor que os embotamentos da civilização. Eis a lição daquela triste derrota que sofri.

Momentos depois, já fora do barco, encontrava-me no ponto de ônibus. Eram cinco da tarde e notei que o busão acabara de passar. Se eu ficasse apenas esperando o outro corria o risco de não chegar à rodoviária em tempo para tomar o ônibus de volta à casa. Afinal, eu carecia ir ainda ao Albergue, apanhar minhas malas e, talvez, tomar um banho. Comecei a pedir carona a todos que passavam. Pedi a um, a outro, a outro... De repente alguém chega às minhas costas e me chama pelo nome. Era uma curitibana do meu quarto. Ela me oferece carona. Quando chego ao carro sua amiga está ao volante. Cumprimentamo-nos. Elas estavam com um carro alugado, passeando ao léu. Passamos diante das dunas e elas apontaram uma enorme bola de plástico transparente na qual aparentemente as pessoas entravam e desciam rolando duna a baixo. Ao que a outra contestou, questionando se os sujeitos dentro da bola não rolavam sobre as águas da Lagoa. Foi aí que ocorreu a minha mais feliz e pragmática metáfora de toda a viagem. Aproximei-me das duas garotas e lhes disse com a voz mais sedutora que fui capaz: “Olha, as duas opções me parecem deliciosas, ficaria com qualquer uma de bom grado!” As moças entenderam o recado e responderam ambas que também tinham gostado muito da idéia. E completaram: “Então vamos agora, nós três?!” Ao que eu disse que adoraria, mas que tinha que apanhar o ônibus de volta pra casa em poucos instantes. E puxei-lhes a orelha por não terem demonstrado tal interesse antes. Que teria sido uma maravilha! Elas entenderam e seguimos viagem.

Chegando ao Albergue elas se despediram e foram pro quarto. Eu, desesperado, teria que gastar uma nota preta com o táxi para tentar, sem garantias, chegar à rodoviária a tempo. Perguntei ao recepcionista se na ilha havia moto-táxi. Ele disse que não. Então entrei no deus Google e achei um. Em sete minutos eu estava de jeans sentando na garupa da moto. A mala não era exatamente uma mochila, mas foi possível coloca-la às costas. Depois de algum tempo, e muitos quilômetros, o moto-taxista - que contou-me haver largado uma profissão muitíssimo bem remunerada para dedicar-se mais ao surf amador - deixava-me na rodoviária. Como ele não tinha troco, deixei-lhe uma grana de gorjeta, apesar de ele haver se proposto ir trocar o dinheiro.

Chegando ao guichê para pedir emissão de segunda via da passagem que eu já havia comprado pela internet, o rapaz me informa que para tal seria necessário fazer um B.O. na delegacia. O problema, disse-lhe, é que o ônibus sai em vinte minutos. Depois de deixar-me em tenso suspense, o sádico atendente me informa que havia uma delegacia há trinta metros dali. Saí correndo. Ao adentrar no estabelecimento vazio, fui atendido por um escrivão sebento. Foi então que compreendi o suposto fundamento da crítica que o pessoal de direita dirige ao Estado, almejando o enxugamento das responsabilidades dele. O escrivão, diante da minha franca atitude e pressa, mostrou-se extremamente inabilidoso, incapacitado a oferecer um bom serviço e seguro de que eu nada podia contra ele e a estabilidade sobre a qual estava sentado. Vendo que eu me irritava com a situação e com sua lerdeza, ele se irritava também e a coisa foi ficando tensa e complicada. Ele digitava trêmulo, o pobre infeliz, catando milho e eu tremia também com raiva e como que ouvindo o tic-tac implacável do relógio a devorar-me. A solução foi entregar nas mãos de Deus – que mais podia fazer? – e estar ali apenas de corpo presente. Levei minha consciência a outro lugar. Passando por tal experiência três vezes por semana, logro dar conta de deixar enfiarem-me agulhas sob as unhas sem chiar. A casa quase caiu quando ele me perguntou qual era o número de minha poltrona. Tentando ser convincente, já que eu não lembrava, disse-lhe que era a quarenta e quatro. Ele disse: “Tem certeza? Porque senão for...” Não esperei que terminasse a frase e assegurei-lhe que era a própria.

Com o maldito B.O. na mão e faltando dois minutos pra o ônibus sair, corri ao guichê. Um outro atendente pegou o B.O. e o estudou. Digitou algo no computador. Disse que o número da poltrona estava errado, que era quarenta e três – e não quarenta e quatro. Expliquei-lhe que na hora não lembrei exatamente e pedi-lhe que relevasse o pequeno detalhe. Ele rabiscou o B.O., colocando o número correto. Fui ao ônibus. Entreguei as bagagens e cheguei à famigerada poltrona. Sem ninguém ao lado, esparramei-me. Dentre em pouco rolou um filme. Assistindo-o chorei, chorei. Eu tinha uma forte conexão com os passageiros. Éramos devotos uns dos outros. Todos pareciam cônscios da necessidade de haver respeito e amor entre os seres humanos. Se isso era mesmo assim eu não sei, mas era assim que sentia que fosse, então, pra mim, era assim.

Dormi legal. Aportei na rodoviária, tomei um táxi e cheguei no paliativo e incerto destino “casa”. Sem final. Feliz ou infeliz.

Nenhum comentário:

Postar um comentário