segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

No Natal de 2010

Aconteceu de eu e a coroa bater o Natal 2010 noutra city. Temos parentes, famílias nossas que não são, entre eles, famílias uns dos outros. Eu fiquei pra uma banda, a mother pra outra. A minha foi mais “raiz”: colei num sitião que um primo meu toma conta isolado na beira do rio. Fiquei por lá e a coroa vazou! A primeira noite, que era a da ceia, conversamos até quatro da matina debaixo do céu, rindo. E nanamos. Acordamos noutro dia, tudo era encontro. Montamos a piscina e as crianças triunfaram na água. Já nós adultos acontecíamos à sombra de uma parreira de maracujás verdes. Naquele verde que era tudo - de mato, de pasto, de pomar e de cana - ousei reacender cigarros que não usava há anos. Brinquei com fogo. Nas ideias com o sagaz primo, levado, fui levado ao galinheiro. Ali me apresentou ele aleluias e fascínio cru: galos que não eram só galos. Eram havença de força-furor, nobreza e loucura. Eram galos de briga. Colocados um a par do outro não se largavam – disse o primo até que um morresse! Mas que ainda assim se podia haver de um continuar bicando o finado até freneticamente. Eles arrepiavam as casuais penas do pescoço e saltavam a bater as esporas de Deus no pescoço do rival; e bicavam; e empurravam; e manobravam; e desviavam; e eram heróis inocentes da Natureza! Pirei, pô! O primo entendeu o meu torpor. Foi por isso que me levou na casa do Carneiro. O Carneiro como meu primo era o cuidador da terra alheia: sentava o popô no ambiente e cuidava de tudo com amor. O Carneiro também era doido. Quando a gente chegou lá ele não tava. Mas meu primo, dominando magistralmente afinados hot vailers e bulldogs me levou no galinheiro do Carneiro. Não foi lindo porque os bichos tavam trocando de pena, daí ficava o couro aparecendo; mas por saber que eles eram fodas e porque eles expressavam isso no olhar eles estavam todos muito perdoados! O setor era sinistro e eu cabrerei, por estar descalço, de pegar uns bichos de pé. Voltamos. Quase na porteira o Carneiro pintou. Na hora entendi o porquê do nome: o sujeito era branco, meio roliço e o cabelo loiro, enrolado. Que figura!!!
Daí voltamos com o Carneiro - para dentro. Quando passávamos pelos hot vailers eu simplesmente fazia de conta que eu não existia e habitava o quintal do Carneiro como um fantasma – eu nunca havia visto um hot vailer morder um fantasma!
Uma vez lá não deu outra: o Carneiro pegou dois pesos pesados e colocou eles pra brigar. Antes, porém, pros bichos não se danificarem, colocou uma espécie de espuma nas esporas e tipo umas “focinheiras” nos bicos dos alucinados guerreiros. Daí o pau quebrou. Mas foi sem graça! Acho que os bichos não sentindo real ameaça um do outro, não se deram ao trabalho de revelar as essências. Desse modo, eu dividia minha atenção entre a luta de araque e o lindo pôr do sol que se fazia presente. Talvez entendendo aquilo como desdém ou descaso, os meus prezados camaradas resolveram tirar as proteções dos galos. Aí eu vi a verdade que os animais são mesmo animais. Foi um show! E digo que os ambientalistas se lasquem porque é da natureza do animal fazer aquilo e se os mesmos se encontrassem por ali sozinhos o pau toraria do mesmo modo; então a mão do homem só os separa e alimenta, treina, para que eles façam o que de todo modo já iam fazer; a diferença é que com a intervenção humana eles recebem aplausos e estímulos de admiradores e afins. Sem contar que as feras mais espirituosas gozam da possibilidade de fecundar inúmeras e incontáveis galinhas; então acho que eles não podem reclamar: nem galos, nem ambientalistas.
Assim que o Carneiro separou os rapazes, cessando com o violento e fascinante frenesi, ele e o meu primo começaram a contar causos. Que delícia! Ríamos com o fígado, a alma e com todo o corpo, mesmo, mesmo, mesmo! Eles contaram que, quando iniciantes, foram no Rei dos galos de briga com dois exemplares medíocres para apostar contra as “máquinas mortíferas” do tal sujeito. Eles diziam ser tão mal informados quanto às sutilezas daquele submundo que começavam a explorar que faziam altas trapalhadas! Por exemplo, quando daquela época, nunca deram vacinas, treino adequado ou vitaminas aos seus animais. E por aí à fora. Mas foram lá, mesmo assim e assim mesmo! Eles contavam rindo, dizendo que a coisa foi ridícula (e cá entre nós realmente havia sido), que almejando que os bichos estivessem fortes e firmes, deram a eles uma quantidade muuuuito exagerada de milho. Assim, os malandros pintaram lá no papa da pancadaria galinácea com os papos indevidamente cheios. Ora, cacete, é lógico que assim supostamente eles não teriam desenvoltura ou agilidade suficientes para o embate. Vendo os galos mal tratados, e a cara de amadores intimidados do meu primo e do Carneiro, o anfitrião da parada fez a aposta arrogantemente, hiper confiante. Porém, os galos pé rapados do meu primo e do Carneiro, mostraram-se loucos e assassinos, malditos, cruéis e incríveis: derrubaram alguns galos até empatarem com outros monstros ao soar das campainhas. A essa altura, estando só o pó da gaita, como dizem eles, ganharam gaiola, mais dias de vida, moral com os donos – e esses ganharam prestígio, tesão e bufunfa.
Contados os causos, casualidades e causalidades, eu e meu primo tomamos o rumo de volta pra casa. Tinha chovido e o barro fazia as suas vezes. Eu descalço sentia como era habitar a Terra honesta. Depois de uma boa parte do percurso vimos ao longe uma moto que se dilacerava em acelerações e despropósitos. O acontecimento consistia em acelerações exageradas e num indeciso pequeno farol aceso no horizonte incerto e escuro. Questionei ao primo se seria alguém fazendo firula ou se era um acidente. Ele fez um de seus muitos gracejos, úteis para não confessar que não sabia do que se tratava, e seguimos em frente. Lá chegando, à beira da cerca, no pasto ao pé da estrada, um touro fungava atiçado. Perguntei se era pra gente, se tava com raiva nossa e o primo disse que se pá era pela chuva que podia cair. Mais à frente, contudo, encontramos uma vaca e muitas outras cabeças em explícito e incontido fuzuê. O porquê daquilo logo entendemos: havia um bezerrinho apartado do rebanho, do lado de fora da cerca, ao lado da estrada de terra. Aparentemente, estava enroscado na cerca. Por isso o primo achegou-se, porque se fosse o caso daria uma mão. Mas não era. Quando o primo encostelou naquele escuro, o bichinho vazou gemendo. Foi aí que o primo anunciou a tragédia: o novilho havia sido atropelado pela moto de cujo pampeiro fomos cúmplices e estava com fratura exposta, detonado. O que dois leigos como nós poderíamos fazer pra ajudá-lo, sem recursos, mas com boa vontade? A única e supostamente mais acertada coisa era ir ao Carneiro que era responsável pelo novilho. Caminhamos pra cacete de volta no escuro. O Carneiro socou-nos em seu corcel II e viemos picando bala até o pobre quadrúpede. Lá chegando e vendo o estrago, nós, juízes da vida, decidimos que o mais viável seria sacrificar o pequeno ser de três meses. Por isso voltamos buscar a tralha necessária à execução. Pegamos trator, caçamba, lanterna, faca e corda. E também a coragem necessária. Ao chegarmos no local do crime, o Carneiro passou o laço em volta do bezerrinho sem nenhum inconveniente. Aí amarrou o bichinho no tronco da cerca ao lado da qual se encontrava a família do dito cujo: expectadores horrorizados da frieza (des)humana. Meu primo cuidava para que o laço não se soltasse e eu segurava a lanterna. Diante da conveniência do assassinato eu havia absolvido a todos nós, em silêncio. Mas as coisas não foram bem. A faca que o Carneiro usava não era apropriada, tinha vezes que ela entortava no coro do bichinho sem entrar. O Carneiro insistia, o bicho berrava desesperado num espetáculo sinuoso. Sangrava esfaqueado, saltitando. Tomava furões. Tinha momentos de deitar abatido e nos dar a errada impressão de ter sucumbido pra na seqüência mugir como um touro, cheio de vida. Que sufoco! Quanto à vaca-mãe, saltitava fungando, berrando, gemendo, doendo à meio metro da chacina. O bicho não morria. A faca não prestava pro serviço e o Carneiro não finalizava o horror. Como a mãe estava quase rompendo a cerca para nos pegar de jeito, tivemos que jogar o bezerro - com fratura exposta, maxilar quebrado e diversos furos de faca no pescoço, nuca e afins – na caçamba do trator; isso de modo a seguir viagem até a casa do Carneiro. Lá a vaca não veria a cena. Com muito sacrifício enfiamos o bicho na caçamba do trator e rumamos. O trator ia na estrada e a vaca correndo em paralelo no pasto, nos acompanhando em luto galopante, a vida ardendo em marcha fúnebre. Que exemplo de amor bovino e de estupidez humana!
No trajeto, meu primo e o Carneiro, que estavam lá no trator, perguntaram a mim que me encontrava com o novilho na caçamba: “O bezerro está bem aí?” – Ao que eu vegetariano respondi, muito severa e revoltadamente: “Ah sim! Está ótimo, está pedindo um milk-shake!” – Meu primo riu e vi que ele comunicou a “piada” ao Carneiro, no intuito de que este também a curtisse. Foi quando o mesmo respondeu: “Mas o que é ‘milk-shake’?” – E meu primo emendou: “Ah, sei lá, é um negócio que vai leite.” – E o Carneiro concluiu, finalmente: “Oxe! Acho que esse seu primo tá tirando nóis eim!” – E deu risada!
Como era estrada de chão, a cada um dos dez mil buracos que passávamos o corpo dilacerado do bezerro deitado pulava e se debatia contra o assoalho. Era foda! Eu olhava para o céu e para o nada voltado a mim e dizia a O Deus que talvez haja: Senhor, perdoai-nos, nós não sabemos o que fazemos! E era mesmo um crime. Lembrei do Jesus que supostamente veio ser massacrado pra que a humanidade fosse salva, e assim entrou pra História. E sentia que também deveria contar a história daquele outro inocente, o bezerrinho, que também estava sendo humilhado, massacrado e destruído, só que mais modesto que Jesus, apenas para que uma meia dúzia de famílias tivessem sua refeição diária.
Após o doloroso e agonizante trajeto chegamos à casa do Carneiro. Foi lá que recebi a notícia de que, por falta de uma alternativa mais apropriada, o bezerro seria exterminado com uma marreta. Como eu estava em cima da caçamba, me deram a lanterna pedindo para que eu “alumiasse” o santo animal para que o Carneiro não errasse as marretadas. Pedi desculpas e disse que não gostaria de fazer aquilo. Então o Carneiro segurou a lanterna com a mão esquerda e desceu o sarrafo com a direita. Eu só ouvia as pancadas. E o bicho não morria! Quando a cabeça do bezerro estava debulhada, foi aí que acordamos que finalmente ele estava morto.
Por fim o cadáver foi jogado no chão; amarramos os tornozelos traseiros e o penduramos de pernas pro ar. Decepamos a cabeça e arrancamos o couro, tiramos a barrigada. Os cachorros comiam peças que os humanos rejeitavam; e bebiam as poças de sangue. O belo bezerro chegou ao ponto de ficar um monstro em carne viva, sem cabeça e sem v ida, feio, fudido. Uma agressão às retinas! Depois a política da boa vizinhança entrou em pauta: pelo serviço que meu primo prestou com minha ajuda, era realmente justo que ele ganhasse uma paleta do animal morto, ou seja, uma coxa e a respectiva perna. Contudo o Carneiro não tinha autoridade ou autonomia para isso. O correto era explicar a situação ao dono da terra e dos bois para que ele então autorizasse a transação. Mas ambos tinham com eles que, sendo muito muquirana, o patrão não doaria a paleta do defunto, não faria o justo. Aí o Carneiro disse que o meu primo deveria levar sim, que ele diria ao patrão que a paleta, no acidente, se extraviou, rasgou-se, moeu-se, ficando inutilizável. Meu primo nem discutiu: disse amém e ganhou o dia! Ao chegar em casa sujo de sangue, banguela, com uma barba de dois dias e uma coxa de bezerro crua de treze quilos nas mãos, sua esposa chamou-o carinhosamente de homem das cavernas e caiu, comigo, na gargalhada. Era uma da manhã e, conforme minha prévia e medíocre programação, eu deveria estar num Baile do Hawaii, a 27 quilômetros dali.
Não havíamos jantado. Então, chupei uvas. Conversamos e eles me convenceram que meu coração só estaria em paz repousando em Cristo. Mas eu entendia que aquela paz era uma fuga do mar turbulento da vida. E eu queria surfar ainda. Mesmo que tomasse uns caldos; mesmo havendo tubarões. Depois de papos fomos enfim dormir. No domingo, 26, acordei tarde com três anjos: as crianças haviam ido ao quintalzão e apanhado frutas no pé. Entregavam-me, dádivas, as dádivas colhidas, enquanto eu despertava feliz.
Aos poucos, sob os cuidados de toda a família fui despertando para mais um dia de Vida-vida, vida-Vida, vida ou Vida – nunca se sabe. Minha mãe me disse por telefone que os parentes de lá estavam me solicitando e que queriam que, ao menos naquele domingo, almoçasse com eles. Fui.
Lá, o churras comeu solto; e a beer e a música doída e triste e esteticamente inviável ao meu gosto. E eu não comia carne, não tomava beer e não curtia a música. As pessoas eram bacanas e me apresentaram champanhe de morango sem álcool. Assaram abacaxi com canela pra mim. Uma consideração, aquilo. Comemos e eu doceiro pirei no pavê que, além de ver, comi. Cerrei cigarros do velho dono da casa e falamos sobre assuntos diversos. Quando nos mandamos, nos deram um vaso com plantas que minha mãe havia de cultivar, mesmo em nosso apartamento.
Quando eu sai da área rural rumo à cidade meu coração se exprimia. Não queria aquilo. Na cidade, todos se medem, se olham, se cuidam e vigiam na loucura. No campo, com bichos somos mais humanos, longe do julgo dos vizinhos.
E, de volta, acabou aquela coisa do Natal e tal.

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