sábado, 1 de maio de 2010

Ética e Finitude

Sentados, como de costume, na mesa do bar os dois amigos, X e Y, conversam:
X- Sabe, estes dias andei pensando sobre o fenômeno morte e cheguei a algumas conclusões que gostaria de discutir com você..., o que pensas sobre a morte?
Y- Penso que seja um estado de não existência, um mergulho no nada. Mas, existem pessoas que pensam diferente: uns acreditam que renascerão posteriormente e viverão outra vida em outro lugar e circunstâncias, outros acreditam que vão para o céu e que suas almas são imortais. E você, o que pensa sobre este assunto?- que aliás diz respeito ao destino comum de todos os viventes...
X- Confesso a você, prezado camarada, não ter formado grande opinião a este respeito, mas, concordo contigo ao averiguares que a morte é, indubitavelmente, o fim único de tudo o que vive. Por mais que isto seja óbvio parece que é um assunto não muito discutido pelas pessoas, não achas?
Y- Realmente, parece que as pessoas não falam muito a este respeito.
X- Uma coisa é evidente: ninguém sabe o que acontece depois da morte; as pessoas podem até ter fé em uma vida melhor depois dela, mas ninguém pode provar que exista outra vida. Na verdade acho que as pessoas têm medo da morte, de saber que não são eternas, e criam estas ficções pra servirem-lhes de consolo. Também penso, diga-me se eu estiver enganado, que as pessoas parecem viver alienadas da morte, seu último e certo fim..., não achas?
Y - Pareces teres razão quando dizes que as pessoas vivem sem se lembrarem de que, mais cedo ou mais tarde, morrerão. E, penso eu, este fenômeno ocorre devido ao fato de as pessoas estarem constantemente concentradas em suas atividades: pergunte a um trabalhador, com exceção de um coveiro ou de alguém que trabalhe em uma funerária, o que ele pensa da morte, evidentemente ele se surpreenderá com a pergunta e se atrapalhará com a resposta. Parece-me que salvo raras exceções, só as crianças questionam assunto tão delicado.
X- Muitíssima boa resposta. Concordo e digo mais; se é que me permites.
Y- Por favor, prossiga.
X- Uma vez constatado o fato de que as crianças se preocupam efetivamente com este assunto e que, por isso mesmo, questionam os adultos sobre o “mistério” da morte, o que calculas ser o mais prudente dizer a elas? Que vamos viver depois, ou que morremos e tudo acaba?
Y- Devemos, filósofos que somos, dizer-lhes a verdade!
X- Evidentemente... mas, me diga por favor, qual é a verdade?
Y- Ora, caro amigo, a verdade é a seguinte: nós não sabemos a verdade!
X- Perfeito. E uma vez sabido que tal informação não está ao nosso alcance, as crianças podem crescer indiferentes a este assunto, como os trabalhadores a pouco mencionados; ou, se for o caso, apegarem-se a algum tipo de consolo, não científico, mas metafísico. Mas, analisemos também a seguinte possibilidade: e se lhes mentíssemos e as disséssemos que sabemos sim, pois Deus nos contou que viveremos no paraíso se formos bons e que vamos para o inferno se formos maus, o que achas que aconteceria?
Y- Penso que estas crianças ficariam, uma vez iludidas por estas alegorias, muito orgulhosas de serem imortais e que, temerosas do castigo e interessadas pela recompensa, levariam uma vida bastante regrada. É que isto implica, necessariamente, no fato de elas estarem sendo vigiadas, em tempo integral, por um ser onisciente, onipotente e onipresente que, convencionalmente, denominamos Deus. Enfim, creio que isto faria com que elas pensassem muito antes de agir desta ou daquela maneira.
X- De acordo. Mas, analisemos também o que aconteceria a estas crianças se lhes mentíssemos o contrário. Como achas que se comportariam se lhes disséssemos que são mortais, ou seja, que só têm esta vida e que Deus não as vigia e, por isso mesmo, não podem ser punidas e nem recompensadas?
Y- Neste caso, parece-me que se tais crianças crescessem sem ter a esperança de uma outra vida, se preocupariam unicamente com esta vida e justamente por não haver uma outra seria necessariamente nesta que teriam que realizar seus projetos, seus sonhos e suas conquistas. Obviamente isto feriria o não pequeno orgulho e a soberba daqueles que se pretendem imortais...
X- Concordando contigo em gênero, número e grau, e relembrando o que constatamos no início de nossa conversa sobre as pessoas que, diferentemente das crianças, parecem estar alienadas quanto ao seu indubitável destino, com exceção, é claro, dos coveiros, das pessoas que trabalham em funerárias e, em menor medida, das que pagam seguro de vida, creio, com efeito, que existe um fenômeno que faz a morte parecer distante às pessoas e não nos permite pensar que ela nos espreita, apetitosamente, em cada esquina. Sabes de que falo?
Y- Pela expressão do teu rosto já imagino onde queres chegar... por favor prossiga.
X- Será, pois, um prazer. Devemos observar que existe um fenômeno comum a muitas, senão a todas as culturas: o sepulcro dos mortos. E é especificamente o fato de enterrarmos os mortos que nos permite esquecer da morte, esquecer da fragilidade de nossas vidas. Reconheçamos, caro amigo, que se os cadáveres ao invés de enterrados, cremados ou mumificados fossem expostos na rua e na praça pública teríamos, por sua imagem ou odor, que encarar neles a nossa própria morte; e a morte em si mesma. Então, como para as crianças, a morte seria mais constante em nossos pensamentos, concordas?
Y- Estou chocado; mas falas a verdade. Apenas não compreendo em que medida possa nos ser de alguma utilidade lembrarmo-nos assiduamente da morte.
X- Boa observação, camarada. Explicá-lo-ei, se é que me permites a mesóclise, tudo o que penso a este respeito... Saber da nossa própria morte é lembrar, é refletir sobre a vida. E como observamos, salvo as crianças e os coveiros, as pessoas comuns não sustentam essa importantíssima reflexão sobre si próprias. Alienadas de sua própria morte, estão também alienadas de sua própria vida! Nessa medida, os cemitérios não passam de meros agentes inibidores de nossas mais profundas e significativas reflexões existenciais: eles permitem que os problemas de mais alta periculosidade filosófica, juntamente com os cadáveres, sejam mortos e enterrados.
Y- Impressionante!
X- Penso que, num sentido metafórico, devemos adquirir uma postura parecida com a dos vermes que, famintos, devoram nossa carne uma vez que estejamos mortos. Assim, o homem que ouve a música constante de sua decomposição orgânica deve assumir um papel análogo ao papel dos vermes, com uma única diferença: devorar-se em vida. Verme consciente das delícias da carne, o homem, enquanto provido de vida, deve saborear-se ao máximo, chafurdar as delícias do corpo, corroendo-se prazerosamente até o momento de sua morte. Aliás, a quantidade de prazer que podemos desfrutar é tão indefinida quanto a quantidade de dias que nos separam do nosso fim... Uma vez morto, o homem deve dar aos vermes apenas uma carcaça excessivamente usada e efetivamente inválida.
Y- Deve ser, então, por isso que temos notícias de cadáveres não mumificados contando com centenas de anos e em pleno estado de conservação! Fico imaginando os vermes se queixando sobre o cadáver de uma pessoa que viveu intensamente: “não existe mais nada de bom neste corpo, a pessoa que o ocupava consumiu todo o seu néctar”; assim, decepcionados, os vermes viram as costas e deixam o corpo intacto.
X- Há, há, há! Essa foi ótima!
Y- Evidentemente que se trata de uma brincadeira, é que, apesar da seriedade do assunto, acho fundamental mantermos o bom humor.
X- Muito bem lembrado, e para celebrar o nosso refinadíssimo, e talvez negro, humor, peçamos mais uma garrafa de vinho que quero propor um brinde.
Y- Agora mesmo...
O garçom enche-lhes os copos:
X- Um brinde às crianças, aos vermes e aos coveiros!
Tim-tin!...

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